Mitos sobre o beato de Canudos

Walnice Nogueira Galvão

  • Nos dois manuscritos de sermões deixados por Antônio Conselheiro (1830?-1897), nada encontramos de profecias, e muito menos a pretensão de reencarnar santo ou messias. Fiando-se em boatos, tais leituras têm origem extramuros e são permeadas pelo preconceito étnico. Uma das inverdades, desmentida pelo próprio Euclides da Cunha (1866-1909), é a de que o beato prometia a ressurreição a quem tombasse em combate. Ora, interrogando prisioneiros, o escritor constatou que sua meta era “salvar a alma”, e não fazer ressurgir do meio dos mortos.

    Profetas e profecias foram gerados em farto número pelo messianismo luso-brasileiro, sobretudo em sua forma típica de sebastianismo. Mas em Canudos, nem o Conselheiro dizia ser São Sebastião, nem os crentes o cultuavam como tal. Sua grei preferia ver nele Santo Antônio, seu xará, padroeiro do arraial e da Igreja Velha, que ali construiu. Ou então lhe atribuía o apelativo sincrético de Bom Jesus Conselheiro. Apesar disso, Euclides da Cunha transcreveu em Os Sertões (1902) duas quadrinhas e uma profecia que aludiam ao retorno de D. Sebastião; nesta se afirma:

    “... Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas do mar D. Sebastião sairá com todo o seu exército...”

    E entre os versos produzidos pela poesia popular figuram estes, encontrados nos escombros de Canudos:

    “D. Sebastião já chegou
    E traz muito regimento...”


         Ou então estes outros:

    “Visita nos vem fazer
    Nosso rei D. Sebastião...”


    Esses textos fizeram história, sendo amiúde invocados em defesa da tese do profetismo e do sebastianismo existentes entre os amotinados.

    Outras afirmações que os autores, inclusive Euclides, repetem por ouvir dizer envolvem a crença em promessas bíblicas aclimatadas ao sertão. Segundo eles, o leito seco do Rio Vaza-barris verteria leite, e suas barrancas se transformariam em cuscuz de milho.                                       
    Trata-se de adaptações regionais das Escrituras, em especial dos livros dos profetas e do Apocalipse.

    Os sermonários do Conselheiro constam na maior parte de roteiros para pregação, com súmulas extraídas dos Evangelhos, úteis a um beato leigo que assumiu a missão de peregrinar pelo sertão mais bravio. Missão a que se consagraria por quase um quarto de século, entregando-se à penitência, encabeçando mutirões para a realização de boas obras e pregando a palavra divina. Não consta que ele profetizasse, a não ser pela espessa bruma de lendas que se condensou em torno desses eventos e, sobretudo, de sua pessoa. Justo ele, em nada usurpador das prerrogativas de sacerdote, cioso da liturgia a ponto de admoestar os fiéis ajoelhados a seus pés, dizendo: “Levante-se, que Deus é outra pessoa”.

    Walnice Nogueira Galvão é professora da Universidade de São Paulo e autora de Euclidiana – Ensaios sobre Euclides da Cunha, 2009 – Prêmio Academia Brasileira de Letras.

    Saiba Mais - Bibliografia

    CUNHA, Euclides. Os Sertões – Campanha de Canudos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

    CALASANS, José.  Cartografia de Canudos. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1997.

    FREYRE, G. Perfil de Euclides e outros perfis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944.