Em 1963, um movimento messiânico agitou os índios Ramkokamekra Canela do Maranhão. Uma mulher grávida profetizou que a relação de desigualdade entre índios e brancos iria se inverter: quando nascesse sua filha, os brancos iriam caçar nas matas e os índios teriam fazendas e aviões. Organiza-se um culto a essa filha que vai nascer, e que desde o ventre de sua mãe já fala e anuncia o que virá. O parto de um menino natimorto, embora contrarie o que foi previsto, encontra explicação, e o movimento continua. Mas fazendeiros vizinhos, irritados com o abate de gado pelos índios, organizam um assalto aos canelas, queimam a aldeia e matam quatro índios, apesar das garantias de invulnerabilidade dadas pela profetisa. O movimento messiânico se esfacela, e o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) desloca temporariamente os canelas para a reserva dos Guajajara.
Esses eventos foram publicados pelo antropólogo americano Bill Crocker e posteriormente analisados por mim em um artigo de 1973, recentemente republicado no livro Cultura com Aspas, da Cosac Naify. Como o artigo é de longa e árdua leitura, vale a pena resumi-lo em poucas palavras e explicitar-lhe a moral.
A análise que então fiz põe em evidência que a profecia de 1963 se assenta, mas inverte a estrutura de um mito clássico entre vários grupos indígenas de língua jê, o mito de Aukê. Esse mito explica a origem da desigualdade entre índios e brancos. Aukê seria um índio que, queimado, teria se transformado no primeiro branco, D. Pedro II (1825-1891) em algumas versões – em todo caso, um fazendeiro benigno. Quando ofereceu aos índios a escolha entre o arco e a espingarda, entre a cuia e o prato, os índios fizeram uma má escolha e ficaram com o arco e a cuia. É por isso que os brancos detêm todo o poder e a riqueza. O movimento messiânico Canela de 1963, ao inverter estruturalmente o mito de origem do homem branco e de seus privilégios, podia assim anunciar um mundo em que as relações de poder também se inverteriam.
Resulta da análise que eventos e movimentos históricos podem ser modos de dialogar com mitos e de reencená-los às avessas para mudar a História. De forma mais ampla, deduz-se disso que a História, por vezes, pode ser passível de um entendimento estruturalista.
Manuela Carneiro da Cunha é professora emérita da Universidade de Chicago e autora de Cultura com aspas e outros ensaios (Cosac Naify, 2009).
O poder de volta aos índios
Manuela Carneiro da Cunha