O padre Antônio Vieira rodou meio mundo pregando a Palavra de Deus. Nascido em Portugal, ele esteve na Holanda, na França e na Itália. Ao vir para o Brasil, singrou as grandes águas da Bahia, do Maranhão e do Pará. Como depois diria no seu famoso Sermão de Santo Antônio, de 1670, nascer português era morrer peregrino. Defensor incansável da liberdade do índio brasileiro, pregava o Evangelho e os valores humanistas. Tido como herege por fazer profecias e defender os judeus portugueses e os cristãos-novos, acabou enfrentando os rigores da Inquisição.
Vieira nasceu em 6 de fevereiro de 1608, filho de Cristóvão Vieira Ravasco e de D. Maria de Azevedo. Em 1609, seu pai começou a trabalhar como escrivão no Tribunal da Relação da Bahia, o que levou a família a se mudar para o Brasil. Cinco anos depois, o futuro padre acabaria estudando no Colégio dos Jesuítas de Salvador, para, em 1623, ainda adolescente e contrariando a vontade dos pais, apresentar-se como noviço à Companhia de Jesus. Em 1634 já era sacerdote.
As ideias que o influenciaram, no entanto, já circulavam alguns anos antes de seu nascimento. Em 1597, D. João de Castro (1551-1623), figura culta do sebastianismo português e seu verdadeiro doutrinador, publicou a obra Sobre a Quinta e Derradeira Monarquia Futura, na qual traça as linhas seguidas pela tradição profética portuguesa. As características básicas do profetismo de Vieira, que puderam ser percebidas meio século depois com o Quinto Império, podem ser identificadas no painel descortinado por D. João.
A leitura das Trovas, de Bandarra, também teve importância na formação de Antônio Vieira. Sapateiro humilde que vivia na Vila de Trancoso, na região da Beira, em Portugal, Bandarra escreveu – provavelmente entre 1520 e 1540 – um conjunto de trovas marcadas pelo visionarismo e pelo messianismo. Seus versos pintavam um futuro magnânimo para os lusitanos, restaurados em sua glória de grandes conquistadores, e falavam da ascensão do Encoberto, um “rei excelente” que novamente derrotaria os muçulmanos.
Possivelmente já contaminado por essas ideias, Vieira voltou para Portugal sete anos depois de sua ordenação. Mas em 1652, devido aos conflitos teológicos e políticos provocados pela defesa que fazia em Lisboa dos judeus e dos cristãos-novos, e com o apoio de seu grande protetor, o rei D. João IV (1604-1656), deixou Lisboa e viajou para o Maranhão a fim de recuperar as missões jesuíticas. Chegou a São Luís no ano seguinte e logo começou sua peregrinação pelos domínios do Norte do Brasil. Entre o ano de sua chegada e 1661, quando os jesuítas foram expulsos do Maranhão e do Pará, Vieira trabalhou arduamente pelas missões, entrando pelos rios Tocantins e Negro, alcançando o arquipélago de Marajó.
A descoberta desse vasto mundo de florestas, de rios e de índios marcou profundamente a vida pessoal, sacerdotal e intelectual de Vieira. Boa parte de sua visão profética da história, do que ele acreditava que viria a ser o Quinto Império, foi construída a partir da realidade física e social do mundo amazônico. Esse ideário pertenceria a uma enigmática e instigante História do Futuro, cujo Livro Anteprimeiro foi publicado somente em 1718, e que continha a leitura que Vieira fez da Bíblia para sustentar o que entendia ser a matéria, a verdade e as utilidades da História do Futuro.
Em Isaías: 18, o padre encontrou o que julgava ser a identidade profetizada do Novo Mundo, do Brasil e, no caso, do Maranhão e da Amazônia: “diz, pois, o Profeta –Isaías – que são estes homens uma gente a quem os rios lhe roubaram a sua terra”. Baseando-se no Livro de Daniel (Daniel: 2), Vieira vislumbrou um Quinto Império que seria a realização do destino náutico, cristão e missionário de Portugal, já encarnado no Milagre de Ourique. Esse império viria na sequência do assírio, do persa, do grego e do romano, e, na visão do religioso, seria cristão, universal e lusitano.
As missões jesuíticas de Vieira nos confins da Amazônia começariam de fato em 1659, três anos depois da morte de D. João IV, quando ele estava em Cametá, na confluência dos rios Amazonas e Tocantins. No dia 29 de abril, o jesuíta escreveu uma carta para o bispo do Japão, André Fernandes, antigo confessor de D. João IV. Intitulada – não por Vieira, pois o documento passou por muitas mãos – Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo, Primeira e Segunda Vida del-Rei D. João o Quarto Escritas por Gonçalo Eanes Bandarra, a carta pretendia confortar a rainha D. Luísa de Gusmão (1613-1666) pela morte do monarca. Mas seu conteúdo acabou sendo interpretado de outra forma.
Ficou evidente que Antônio Vieira, influenciado pelas Trovas de Bandarra, deixara de lado o sebastianismo propriamente dito e passara a pregar a volta de um D. João IV ressuscitado para o trono de Portugal, condição histórica para que o Quinto Império se concretizasse. O documento do grande pregador parece fazer referência a Esperanças de Israel (1650), livro de autoria do rabino de origem portuguesa Menasseh ben Israel (1604-1657), com quem o jesuíta manteve contato em Amsterdã em 1648.
Enquanto isso, Vieira continuava a sua luta pelo fortalecimento das missões e pela liberdade dos índios, o que só fez aumentar a indisposição dos colonos contra a ação jesuítica no Norte do Brasil. Em 15 de maio de 1661, a população de São Luís se rebelou contra a Companhia de Jesus. Em 17 de julho do mesmo ano, foi a vez de Belém ser palco de outra rebelião. Os revoltosos acreditavam que os jesuítas estavam criando obstáculos à escravização dos índios. Vieira estava em Belém, onde, com grande constrangimento – segundo Antônio Baena (1782-1850), um cronista do século XIX –, foi enviado, com muitos de seus companheiros de missão, para uma prisão em São Luís, e de lá para Lisboa. Começava um outro e dramático capítulo na história do pregador dos Sermões.
Em 1662, na Capela Real de Lisboa, diante de D. Luísa de Gusmão e do futuro rei D. Afonso VI (1643-1683), Vieira pregou o fulgurante Sermão da Epifania. O texto falava do grande mal que fora a expulsão dos jesuítas do Maranhão e do Pará, antes terras do Verbo (Jesus Cristo), depois pátria do Anticristo (o Diabo). E defendia a volta dos jesuítas para o Norte do Brasil, a fim de garantir a liberdade dos índios e realizar os serviços espirituais dos quais a Colônia precisava. Sem eles, o Verbo jamais triunfaria. Tudo isso deu início a uma crise envolvendo Vieira, o Trono e a Igreja Católica em Portugal.
Entre 1663 e 1667, Antônio Vieira acabou virando alvo de um longo processo da Inquisição portuguesa, reunida em Coimbra e em Lisboa, e que consumiu trinta sessões de interrogatórios. Em 1667, a abdicação de D. Afonso VI em favor de seu irmão, D. Pedro (1648-1706), mudou as condições políticas no país, e o poder voltou às mãos da nobreza que era próxima de Vieira. Em 30 de junho de 1668, o padre foi perdoado pelo Conselho Geral da Inquisição de Lisboa. Mas não era o fim de tudo.
Só bem mais tarde, no dia 17 de abril de 1675, em Roma, ele obteve um Breve pontifício, documento assinado pelo papa Clemente X (1590-1676) que o isentava de todas as penas, censuras e restrições eclesiásticas relativas ao processo inquisitorial, como a reclusão, o interdito intelectual, a privação do direito de se expressar publicamente e também o de pregar. Em 1681, o padre partiu definitivamente para o Brasil como Superior das Missões, e instalou-se na Quinta do Tanque, na Bahia, falecendo ali no dia 18 de julho de 1697, aos 89 anos.
Recluso nos cárceres da Inquisição, peregrinando por Roma (1669-1675) ou durante seus últimos anos no Brasil (1681-1697), Vieira trabalhou ardorosamente suas ideias proféticas. Desde 1640, pensava na obra que sintetiza todo o seu sistema profético, a Clavis Prophetarum (Chave dos Profetas). Quando escreveu Esperanças de Portugal, na amazônica Cametá, em 1659, e falou da ressurreição de D. João IV e do Quinto Império, suas profecias já encontravam bons ouvintes. Antônio Vieira foi uma lenda do século XVII, tanto na Europa como no Brasil, e ficou marcado como alguém que lutou pela fé, pela liberdade e pelo homem.
Geraldo Mártires Coelho é professor da Universidade Federal do Pará e autor de Espelho da Natureza – Poder, Escrita e Imaginação na Revelação do Brasil (Paka-Tatu, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia
AZEVEDO, J. Lúcio de. Os jesuítas no Grão-Pará; suas missões e a colonização. 2ª ed. Belém: Secult, 1999.
PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento, a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antônio Vieira. São Paulo: EdUsp; Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 1994.
PELOSO, Silvano. Antônio Vieira e o Império Universal – a Clavis Prophetarum e os documentos inquisitoriais. Rio de Janeiro: De Letras, 2007.
VIEIRA, Antônio. História do Futuro. Livro Anteprimeiro. 2ª ed. Belém: Secult, 1998.
Quinto Império verde
Geraldo Mártires Coelho