Quando o Relatório da Comissão Nacional da Verdade foi entregue no último mês de dezembro, a presidente Dilma Rousseff declarou que as instituições do Estado “reconhecem e valorizam os pactos políticos que nos levaram à redemocratização”. Os acordos nacionais entre as forças da ditadura e novos atores políticos têm sido a marca dos processos de transição para as democracias. E não só no Brasil. Há 30 anos, nosso Congresso Nacional – transformado em Colégio Eleitoral – elegeu de forma indireta o primeiro presidente civil após o regime militar. Uma década depois, na África do Sul, movimentos de resistência da população negra negociavam a passagem do apartheid para a “democracia racial”.
Tanto no país africano quanto no Brasil, as mudanças no poder foram determinadas por medidas de exceção negociadas. Abriu-se mão de uma série de princípios e normalidades da democracia em favor da busca por consenso político. O principal item pactuado em território brasileiro foi o silêncio sobre as graves violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura e a manutenção de estruturas e agentes do Estado autoritário no novo regime. Na África do Sul, ao contrário, ficou estabelecido que a ampla narrativa dos crimes dos anos de segregação racial era imprescindível para uma passagem menos violenta à nova fase em que o país entrava. Em comum com o Brasil, a decisão de deixar aqueles crimes sem punição.As democracias nascidas nas últimas décadas carregam heranças dos regimes autoritários ou totalitários que as antecederam. Assim foi no Leste Europeu, após a queda dos governos pró-soviéticos – Romênia, Hungria, Polônia e nas antigas Iugoslávia e Tchecoslováquia – e com as poucas democracias que substituíram o colonialismo tardio na Ásia (Vietnã, Camboja, Timor Leste) e na África (Angola, Moçambique, Ruanda). Na América Latina, em países como Argentina, Chile e Uruguai, ocorreu algo semelhante: a marca do novo regime político era a promessa de desfazer as injustiças do passado – o que, na prática, pode ocorrer com maior ou menor radicalismo. Tanto o Brasil, após o governo militar, quanto a África do Sul, em seguida ao apartheid, são países que fizeram suas transições sem profundas rupturas, a partir de pactos negociados entre os velhos e os novos atores políticos.A transição do governo autoritário brasileiro para a democracia se deu de acordo com o modelo escolhido pela oligarquia política e econômica: a abertura deveria ser gradual, controlada e sem o menor risco de apuração e julgamento do passado de violência. A ditadura chegava ao fim, porém alguns elementos legados dos mais de 20 anos de regime militar permaneceriam em nosso cotidiano. A democracia nasceu sob a suspensão de direitos: os crimes de graves violações durante a ditadura não foram apurados e o primeiro governo civil foi indicado por um Colégio Eleitoral de cerca de 500 parlamentares integrantes de um Legislativo sitiado pelas leis autoritárias do regime ditatorial. A Constituição de 1988 manteve as polícias militares e a concepção de que a segurança pública tem um inimigo interno – que pode variar entre traficantes, jovens negros e pobres, militantes políticos, vândalos, terroristas, a depender do contexto. De modo absurdo em tempos democráticos, as Forças Armadas continuam presentes no dia a dia do país, seja na ocupação de espaços civis – como as favelas cariocas – seja influenciando as pautas políticas.Na África do Sul, o regime de segregação racial começou ainda sob a colonização (primeiro holandesa, depois britânica) e configurou-se como uma das mais injustas experiências políticas da humanidade. Em 1948, o apartheid transformou-se em princípio da Constituição nacional, e durante a década de 60 foi intensificada a separação territorial e de direitos civis entre brancos e negros. Começava ali a classificação da sociedade em white, black e colored – estes últimos, asiáticos e indianos ou os nascidos da miscigenação entre esses grupos.Após cerca de 40 anos de imposição do regime de segregação racial, em 1985 abriram-se as negociações visando ultrapassar os anos de violência política e opressão em busca de um processo de reconciliação nacional. Os trabalhos da transição foram liderados por Nelson Mandela, líder do movimento de resistência dirigido pelo partido Congresso Nacional Africano, e Frederik de Klerk, último presidente branco do país. Entre os principais acordos estava o diálogo entre as vítimas e os criminosos. A ideia era promover a reconciliação na esfera comunitária, que se encontrava esgarçada ao fim do apartheid. Criada em 1995, a Comissão de Reconciliação e Verdade, organização autônoma do Estado, conduziu a apuração de violações aos direitos humanos por meio da narrativa das vítimas e através da confissão dos responsáveis pelos crimes. A punição seria trocada pela anistia.Após cerca de dois anos de trabalho, nos quais a Comissão ouviu o testemunho de quase 30 mil pessoas, um relatório propôs indiciamento criminal de autoridades do antigo regime e de instituições políticas. Das 29 mil testemunhas, cerca de 7 mil eram agentes da repressão – policiais, oficiais militares e políticos – dos quais apenas 17% foram anistiados (pouco mais de 1.100 pessoas), já que o restante prestou testemunho falso ou incompleto.A absoluta novidade da experiência sul-africana foi se apoiar nos tradicionais moldes do Direito ocidental, valorizando as subjetividades narradas nos testemunhos recolhidos pela Comissão. Esta saída, entretanto, apresentou alguns limites. Talvez o maior tenha sido, paradoxalmente, seu mais alto trunfo: ao trocar o ilícito (os crimes contra a humanidade) pelo lícito (o amparo da anistia), sob a condição de conhecer a verdade, a nova nação sul-africana pôde iniciar sua reconciliação mas, ao mesmo tempo, deixou de punir os responsáveis pelos crimes do passado. O momento inaugural das novas relações democráticas incluiu a suspensão dos atos de Justiça.Os casos do Brasil e da África do Sul levantam uma série de questionamentos sobre o que são as democracias com legado autoritário. Qual a função desempenhada pelo passado no presente – e, em especial, o papel da memória dos anos autoritários na ação política atual? É possível esquecer os horrores vividos e voltar-se para um futuro sem violência? Ou a memória hiperbólica da tortura e da manipulação do corpo continua a habitar o cenário da democracia, nas relações entre a rua (espaço público) e a casa (espaço privado), entre o político e o biológico?Ao longo dos anos, sofremos a escravidão, o extermínio de índios, ditaduras e problemas crônicos nas áreas de saúde, educação, alimentação e outros direitos universais. A mais longa democracia conquistada pelo país mantém-se herdeira das injustiças e das carências do passado. Sob a promessa de desfazer os erros cometidos – sempre em outro governo, outro Estado, outra história – e diminuir o sofrimento social, autoriza-se o acionamento de medidas emergenciais que dispensam os procedimentos democráticos.Para evitar rupturas sociais traumáticas, as democracias do Brasil e da África do Sul nasceram submetidas a limites pelos quais até hoje pagam o preço – o autoritarismo e a violência persistentes em valores culturais coletivos e no âmbito mais subjetivo. Suas populações continuam convivendo, por exemplo, com práticas de tortura por parte de agentes do governo – uma herança da suspensão da Justiça no simbolismo de suas anistias.As democracias herdeiras de regimes autoritários se relacionam com os desejos de recordação e esquecimento, de ódio e vingança. É um novo quadro social no qual se encontra um cruzamento ilimitado de demandas por direitos, em que a sociedade pressiona o Estado e demais instituições políticas, e sujeitos e grupos identitários se chocam com o consenso da memória coletiva nacional. Vemos, por exemplo, países como Argentina e Chile cindidos em batalhas de memórias antagônicas que não tiveram oportunidades de se confrontarem dentro de um jogo democrático devido a seus processos de transição consensuais. No Brasil, durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, foram presenciadas manifestações públicas de apoio ao Golpe de 1964.A boa saúde futura do corpo político depende do trato dispensado à memória e de como nos apropriamos dela no presente.Edson Teles é professor de Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo e organizador de O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010).Saiba MaisARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. Prefácio de D. Paulo Evaristo Arns. Petrópolis: Vozes, 1985.COMISSÃO de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e INSTITUTO de Estudos da Violência do Estado. Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964. Prefácio D. Paulo Evaristo Arns. São Paulo: Imesp, 2009.MANDELA, Nelson. Os caminhos de Mandela. Lições de vida, amor e coragem. São Paulo: Globo, 2010.SÁBATO, Ernesto. Nunca Mais. Informe da Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas na Argentina. Porto Alegre: L&PM, 1984.
O preço de não punir
Edson Teles