O preço de não punir

Edson Teles

  • Tanque das Forças Armadas na ocupação do Complexo do Alemão no Rio, em 2010. (Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil)Quando o Relatório da Comissão Nacional da Verdade foi entregue no último mês de dezembro, a presidente Dilma Rousseff declarou que as instituições do Estado “reconhecem e valorizam os pactos políticos que nos levaram à redemocratização”. Os acordos nacionais entre as forças da ditadura e novos atores políticos têm sido a marca dos processos de transição para as democracias. E não só no Brasil. Há 30 anos, nosso Congresso Nacional – transformado em Colégio Eleitoral – elegeu de forma indireta o primeiro presidente civil após o regime militar. Uma década depois, na África do Sul, movimentos de resistência da população negra negociavam a passagem do apartheid para a “democracia racial”.
     
    Tanto no país africano quanto no Brasil, as mudanças no poder foram determinadas por medidas de exceção negociadas. Abriu-se mão de uma série de princípios e normalidades da democracia em favor da busca por consenso político. O principal item pactuado em território brasileiro foi o silêncio sobre as graves violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura e a manutenção de estruturas e agentes do Estado autoritário no novo regime. Na África do Sul, ao contrário, ficou estabelecido que a ampla narrativa dos crimes dos anos de segregação racial era imprescindível para uma passagem menos violenta à nova fase em que o país entrava. Em comum com o Brasil, a decisão de deixar aqueles crimes sem punição. 
     
    As democracias nascidas nas últimas décadas carregam heranças dos regimes autoritários ou totalitários que as antecederam. Assim foi no Leste Europeu, após a queda dos governos pró-soviéticos – Romênia, Hungria, Polônia e nas antigas Iugoslávia e Tchecoslováquia – e com as poucas democracias que substituíram o colonialismo tardio na Ásia (Vietnã, Camboja, Timor Leste) e na África (Angola, Moçambique, Ruanda). Na América Latina, em países como Argentina, Chile e Uruguai, ocorreu algo semelhante: a marca do novo regime político era a promessa de desfazer as injustiças do passado – o que, na prática, pode ocorrer com maior ou menor radicalismo. Tanto o Brasil, após o governo militar, quanto a África do Sul, em seguida ao apartheid, são países que fizeram suas transições sem profundas rupturas, a partir de pactos negociados entre os velhos e os novos atores políticos.
     
    A transição do governo autoritário brasileiro para a democracia se deu de acordo com o modelo escolhido pela oligarquia política e econômica: a abertura deveria ser gradual, controlada e sem o menor risco de apuração e julgamento do passado de violência. A ditadura chegava ao fim, porém alguns elementos legados dos mais de 20 anos de regime militar permaneceriam em nosso cotidiano. A democracia nasceu sob a suspensão de direitos: os crimes de graves violações durante a ditadura não foram apurados e o primeiro governo civil foi indicado por um Colégio Eleitoral de cerca de 500 parlamentares integrantes de um Legislativo sitiado pelas leis autoritárias do regime ditatorial. A Constituição de 1988 manteve as polícias militares e a concepção de que a segurança pública tem um inimigo interno – que pode variar entre traficantes, jovens negros e pobres, militantes políticos, vândalos, terroristas, a depender do contexto. De modo absurdo em tempos democráticos, as Forças Armadas continuam presentes no dia a dia do país, seja na ocupação de espaços civis – como as favelas cariocas – seja influenciando as pautas políticas.
     
    Na África do Sul, o regime de segregação racial começou ainda sob a colonização (primeiro holandesa, depois britânica) e configurou-se como uma das mais injustas experiências políticas da humanidade. Em 1948, o apartheid transformou-se em princípio da Constituição nacional, e durante a década de 60 foi intensificada a separação territorial e de direitos civis entre brancos e negros. Começava ali a classificação da sociedade em white, black e colored – estes últimos, asiáticos e indianos ou os nascidos da miscigenação entre esses grupos. 
     
    Após cerca de 40 anos de imposição do regime de segregação racial, em 1985 abriram-se as negociações visando ultrapassar os anos de violência política e opressão em busca de um processo de reconciliação nacional. Os trabalhos da transição foram liderados por Nelson Mandela, líder do movimento de resistência dirigido pelo partido Congresso Nacional Africano, e Frederik de Klerk, último presidente branco do país. Entre os principais acordos estava o diálogo entre as vítimas e os criminosos. A ideia era promover a reconciliação na esfera comunitária, que se encontrava esgarçada ao fim do apartheid. Criada em 1995, a Comissão de Reconciliação e Verdade, organização autônoma do Estado, conduziu a apuração de violações aos direitos humanos por meio da narrativa das vítimas e através da confissão dos responsáveis pelos crimes. A punição seria trocada pela anistia. 
     
    Após cerca de dois anos de trabalho, nos quais a Comissão ouviu o testemunho de quase 30 mil pessoas, um relatório propôs indiciamento criminal de autoridades do antigo regime e de instituições políticas. Das 29 mil testemunhas, cerca de 7 mil eram agentes da repressão – policiais, oficiais militares e políticos – dos quais apenas 17% foram anistiados (pouco mais de 1.100 pessoas), já que o restante prestou testemunho falso ou incompleto. 
     
    A absoluta novidade da experiência sul-africana foi se apoiar nos tradicionais moldes do Direito ocidental, valorizando as subjetividades narradas nos testemunhos recolhidos pela Comissão. Esta saída, entretanto, apresentou alguns limites. Talvez o maior tenha sido, paradoxalmente, seu mais alto trunfo: ao trocar o ilícito (os crimes contra a humanidade) pelo lícito (o amparo da anistia), sob a condição de conhecer a verdade, a nova nação sul-africana pôde iniciar sua reconciliação mas, ao mesmo tempo, deixou de punir os responsáveis pelos crimes do passado. O momento inaugural das novas relações democráticas incluiu a suspensão dos atos de Justiça. 
     
    Os casos do Brasil e da África do Sul levantam uma série de questionamentos sobre o que são as democracias com legado autoritário. Qual a função desempenhada pelo passado no presente – e, em especial, o papel da memória dos anos autoritários na ação política atual? É possível esquecer os horrores vividos e voltar-se para um futuro sem violência? Ou a memória hiperbólica da tortura e da manipulação do corpo continua a habitar o cenário da democracia, nas relações entre a rua (espaço público) e a casa (espaço privado), entre o político e o biológico?
     
    Ao longo dos anos, sofremos a escravidão, o extermínio de índios, ditaduras e problemas crônicos nas áreas de saúde, educação, alimentação e outros direitos universais. A mais longa democracia conquistada pelo país mantém-se herdeira das injustiças e das carências do passado. Sob a promessa de desfazer os erros cometidos – sempre em outro governo, outro Estado, outra história – e diminuir o sofrimento social, autoriza-se o acionamento de medidas emergenciais que dispensam os procedimentos democráticos. 
     
    Para evitar rupturas sociais traumáticas, as democracias do Brasil e da África do Sul nasceram submetidas a limites pelos quais até hoje pagam o preço – o autoritarismo e a violência persistentes em valores culturais coletivos e no âmbito mais subjetivo. Suas populações continuam convivendo, por exemplo, com práticas de tortura por parte de agentes do governo – uma herança da suspensão da Justiça no simbolismo de suas anistias. 
     
    As democracias herdeiras de regimes autoritários se relacionam com os desejos de recordação e esquecimento, de ódio e vingança. É um novo quadro social no qual se encontra um cruzamento ilimitado de demandas por direitos, em que a sociedade pressiona o Estado e demais instituições políticas, e sujeitos e grupos identitários se chocam com o consenso da memória coletiva nacional. Vemos, por exemplo, países como Argentina e Chile cindidos em batalhas de memórias antagônicas que não tiveram oportunidades de se confrontarem dentro de um jogo democrático devido a seus processos de transição consensuais. No Brasil, durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, foram presenciadas manifestações públicas de apoio ao Golpe de 1964.
     
    A boa saúde futura do corpo político depende do trato dispensado à memória e de como nos apropriamos dela no presente.
     
    Edson Teles é professor de Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo e organizador de O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010).  
     
    Saiba Mais
     
    ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. Prefácio de D. Paulo Evaristo Arns. Petrópolis: Vozes, 1985.
    COMISSÃO de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e INSTITUTO de Estudos da Violência do Estado. Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964. Prefácio D. Paulo Evaristo Arns. São Paulo: Imesp, 2009.
    MANDELA, Nelson. Os caminhos de Mandela. Lições de vida, amor e coragem. São Paulo: Globo, 2010.
    SÁBATO, Ernesto. Nunca Mais. Informe da Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas na Argentina. Porto Alegre: L&PM, 1984.