Semeando cravos

Raquel Varela

  • Historiadores como Valério Arcary defendem que o fator exemplo é determinante na abertura de um período revolucionário. O “efeito dominó” que varreu ditaduras no sul da Europa nos anos 1970 reforça esta tese. Ele começou em Portugal. 
     
    A mais longa ditadura europeia já durava 48 anos quando um golpe pôs fim ao Estado Novo, no dia 25 de abril de 1974. Exauridos pela incapacidade de derrotar os movimentos de libertação em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, numa guerra que se prolongava desde 1961, os próprios militares portugueses deram início à derrubada do governo. Seguiu-se uma crise política combinada com uma situação revolucionária. A população, irada e exasperada pela repressão, pela inflação, pela pobreza, vem para as ruas e faz eclodir a Revolução dos Cravos, que dura 19 meses. 
     
    O nome era uma referência às flores que naquele período as mulheres de Lisboa distribuíam aos soldados. Paulatinamente, transformavam-se todas as estruturas do antigo regime – censura, polícia política, partido único – e evoluía-se para uma revolução social, capaz de questionar a propriedade privada dos meios de produção. Greves, ocupações de fábricas e ocupações de terras combinaram-se com novos métodos de organização política – como as comissões de trabalhadores, moradores e soldados – levando o país à nacionalização do sistema financeiro e à reforma agrária.
     
    O governo vê-se obrigado a atualizar o salário mínimo e a conter os preços dos alimentos, depois de várias manifestações contra a “carestia de vida”. Em mais de 300 fábricas e empresas foi preciso intervir para evitar demissões e descapitalização. Em muitas outras, os trabalhadores – organizados em partidos de esquerda e extrema-esquerda (num total de mais de 50 organizações), além de muitos desorganizados e espontâneos – conseguiram aumentos salariais, contrato coletivo, 13º salário e subsídio de Natal. Também foram obtidas melhorias generalizadas na previdência, assistência maternidade, doença e invalidez, saúde, educação e segurança social. 
     
    A revolução acaba derrotada em 25 de novembro de 1975, com um golpe dirigido pela ala moderada das Forças Armadas, pelo Partido Socialista, pela Igreja e pela direita conservadora. Mas a radicalidade dos conflitos vividos obriga o país a construir um pacto social, na forma de uma nova Constituição, aprovada em 25 de abril do ano seguinte. Consolidaram-se, naquela Carta, os mais amplos avanços de direitos econômicos, sociais, políticos e culturais da história de Portugal. 
     
    Os conflitos sociais da revolução portuguesa se deram nos anos de maior transformação econômica e social do mundo ocidental desde o pós-guerra: o maio de 1968 na França, a luta estudantil e os protestos operários na Itália (1968/1969), o golpe militar no Chile (1973), a guerra do Yom Kippur opondo Israel ao Egito e à Síria (1973), os Estados Unidos perdendo a guerra do Vietnã e enfrentando o escândalo Watergate, que leva à demissão de Nixon (1974). Gerald Ford, presidente dos Estados Unidos entre 1974 e 1977, assume temer um “efeito dominó”, ou seja, o contágio da revolução portuguesa na Espanha e desta para a França e a Itália: “Se um membro da OTAN se converte em comunista, (...) isso destruiria a Aliança Atlântica. Não podemos dar esse mau exemplo em Portugal”. 
     
    O mesmo temor agitava o governo espanhol, que reagiu impulsivamente, e de imediato, à queda da ditadura em Portugal. Iniciava-se o período conhecido como transição espanhola, que começa em 1974 e se estende até a assinatura de um pacto social em 1978, conhecido por Pactos de Moncloa. Na Espanha, o fim da ditadura foi um processo de muitos avanços e recuos, cuidadoso para deter as agitações sociais e impedir uma ruptura em todo o sul europeu. Durante esses anos conturbados – de greves, manifestações, prisões, repressão – a ditadura franquista ruiu não de “um dia para o outro” como em Portugal, mas gradualmente. A morte do ditador, em 1975, certamente contribuiu para a transição. Fato é que em 1978 os partidos estavam legalizados, as liberdades garantidas e uma nova e ampla gama de direitos sociais e trabalhistas assegurada. 
     
    Na Espanha de hoje, a memória do processo de transição à democracia (1974-1978) procura dissociar o que houve em seu país da Revolução dos Cravos, em Portugal. Ao descrever o processo espanhol como uma simples negociação entre elites políticas, ignora-se, intencionalmente, toda a radicalização que houve naqueles anos – em que morreram mais de 150 pessoas em choques com a polícia. 
     
    Quando se dá a revolução portuguesa, a situação social na Espanha já se assemelha a um barril de pólvora prestes a explodir: em 1971 registaram-se 616 conflitos trabalhistas, em 1974 foram 2.290, e em 1976, 40.179. Meses depois do início da Revolução dos Cravos, o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) é legitimado: embora ainda ilegal, passa a usar os seus símbolos e bandeiras na rua. E em setembro a embaixada e o consulado da Espanha em Lisboa são destruídos e queimados por militantes de extrema-esquerda, em resposta à execução de militantes da esquerda pelo ditador espanhol Francisco Franco. 
     
     A influência também se manifestou em fatores culturais e sociais – como as feiras do livro português organizadas em cidades do país vizinho, e a romaria de espanhóis a Lisboa, onde formavam filas à porta dos cinemas para ver filmes proibidos em sua terra. “Ainda que algumas pessoas tenham dito que se deve evitar que Espanha se portugalize, parece-me que a portugalização de Espanha é inevitável”, afirmou, em junho de 1974, o líder do Partido Comunista de Espanha (PCE), Santiago Carrillo.
     
    Os destinos históricos e políticos de Portugal e Espanha parecem estar ligados de forma permanente, sendo muito difícil subsistirem por longo tempo dois regimes políticos distintos na Península Ibérica. Mas o “efeito dominó” sobre ditaduras que durante anos mantiveram a oposição controlada chegaria também à Grécia, que cai três meses depois do 25 de Abril em Portugal, tendo como gatilho um golpe de Estado no Chipre. A ditadura dos coronéis gregos não resistiu às manifestações de massas, entre elas as estudantis que enchiam as ruas de Atenas, e desmoronou como um castelo de cartas no dia 24 de julho de 1974. 
     
    As características dessas revoluções eram resultado de profundas mudanças socioeconômicas no Ocidente. Com a industrialização dos países semiperiféricos, o movimento operário cresceu e se concentrou em bairros específicos. A demanda de produção impulsionou a expansão das universidades, pela necessidade de formar quadros qualificados. Ao mesmo tempo, a crise econômica que explodiu em 1970 provocou inflação em diversos países. Tudo isso num quadro em que os partidos comunistas tradicionais – que tinham desde a década de 1930 uma estratégia de aliança política com setores das classes dominantes – perdem espaço para o crescimento de partidos de extrema-esquerda. Uma extrema-esquerda maoísta, guevarista, trotskista, mais combativa e menos disposta a acordos. 
     
    O paradigma da “transição pacífica” não encontra eco na realidade daqueles anos. Se ele existe, é porque cumpre uma função política para os regimes atuais. “A necessidade de apresentar a transição como um grande ato de reconciliação das ‘duas’ Espanhas levou-nos a uma necessária reinterpretação-deformação do nosso passado. Toda a noção de conflito coletivo (...) foi abandonada para explicar o passado e o presente da Espanha”, assinala o historiador catalão Xavier Doménech.
     
    Portugal, Espanha e Grécia são hoje Estados Sociais e regimes democráticos. Representam a vitória das demandas operárias daquele período, mas também um retrocesso em face da radicalidade revolucionária por que passaram. Desde 2008, por força do impacto das medidas anticíclicas para driblar a crise econômica, vivem um novo período histórico, marcado, até aqui, pela erosão do Estado Social e pela emergência de novos atores políticos – como o grego Syriza, de extrema-esquerda, que acaba de chegar ao poder. No cenários dos conflitos desencadeados nos últimos anos, os movimentos sociais desses países lutam para manter as conquistas sociais pelas quais lutaram quatro décadas atrás.
     
    Raquel Varela é professora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, e autora de Revolução ou Transição? História e Memória da Revolução dos Cravos (Bertrand, 2012).
     
    Saiba mais
     
    ARCARY, Valério. “Quando o futuro era agora: Trinta anos da revolução portuguesa”. Revista Outubro, nº 11. Disponível em: www.revistaoutubro.com.br/edicoes/11/ out11_04.pdf.
    MAXWELL, KENNETH. O império derrotado: Revolução e democracia em Portugal. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.