Somos todos constituintes

Marcelo Torelly

  • O projeto político da ditadura militar continha uma clara premissa: o povo brasileiro é despreparado para o exercício do governo. Daí a necessidade de uma elite ilustrada governar, guiando uma população inculta e incapaz de decidir sobre os rumos da nação. Esse elitismo tecnocrático se fez presente na própria justificativa do Golpe de 1964, ancorada no receio de que uma massa ignorante pudesse ser manipulada por um líder populista rumo a um projeto de nação comunista. Seguindo essa premissa, o regime não tardou em operar mudanças no sistema legal brasileiro, com o objetivo de usar um direito “neutro”, produzido por especialistas, para evitar que a participação política prejudicasse o progresso.
     
    Os primeiros atos institucionais, restringindo direitos e liberdades, são testemunho dessa mentalidade, e as mudanças constitucionais de 1967 e 1969 não deixam dúvida sobre o estilo e os objetivos da “Revolução”. É verdade que nenhuma Constituição brasileira havia sido produto de efetivo exercício democrático e popular. Mas os militares levaram isso ao extremo. O Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, abriu caminho para o bipartidarismo e eliminou a possibilidade de participação de inúmeras forças políticas no processo legislativo. Nesse cenário, já por si restritivo, o governo militar optou por formar uma comissão de especialistas para organizar o arcabouço legal do regime. Em 7 de dezembro de 1966, o Ato Institucional nº 4 convocou o Congresso Nacional em caráter extraordinário. Limitado tanto pelo bipartidarismo quanto pelas cassações de mandato de parlamentares da oposição (um em cada cinco mandatos obtidos nas eleições anteriores haviam sido cassados), o Legislativo foi chamado a apreciar, em exíguo espaço de tempo, o anteprojeto proposto pelo governo. Sem participação popular, uma nova Constituição foi aprovada. Ela institucionalizava juridicamente o regime e concentrava o poder de decisão nas mãos do Executivo, em prejuízo do Congresso Nacional.
     
    Longe de representar os anseios da sociedade, a nova Constituição também não garantia ao governo as condições que desejava para exercer seu regime de força. Embora a própria ideia de constitucionalismo – entendida como limitação do poder e garantia de direitos fundamentais – se mostrasse incompatível com uma ditadura, os militares decidiram fazer outra reforma constitucional radical, que desembocaria no texto de 1969. A tarefa de redigir a nova Constituição novamente não seria confiada ao povo, mas sim a um comitê de notáveis, integrado pelo general Costa e Silva, pelo vice-presidente Pedro Aleixo, os ministros da Justiça e Planejamento, Gama e Silva e Hélio Beltrão, o chefe da Casa Civil, Rondon Pacheco, os representantes do establishment legal, Miguel Reale e Carlos Medeiros Silva, e um ministro do STF, Themistocles Cavalcanti. A nova Constituição foi outorgada no mês de outubro, com algumas diferenças em relação ao texto proposto pelo comitê, como parte do episódio histórico que restou conhecido como o “golpe dentro do golpe”, dado o conjunto de mecanismos excepcionais empreendidos para alterar a distribuição de poder dentro do regime. 
     
    Sob a égide do Ato Institucional nº 5, promulgado em dezembro de 1968, e da nova Constituição, graves violações aos direitos humanos foram praticadas. E a governança por notáveis não gerou os resultados esperados: a despeito da brutal repressão aos dissidentes e mesmo exercendo um poder praticamente ilimitado, o regime conduziu o país a um endividamento externo sem precedentes, alavancando o “milagre econômico” que desaguaria em brutal concentração de renda e uma ferina crise econômica, seguida por anos de hiperinflação. Apesar do cenário de caos, as elites dirigentes e econômicas seguiram apoiando o governo, certas de que alternativas democráticas não permitiriam resultados melhores. Diferentemente do ocorrido em países vizinhos, como Argentina e Chile, o apoio dos setores civis à ditadura militar não erodiu no Brasil. 
     
    Na bancada do Congresso Nacional, da esquerda para a direita, o presidente do Senado (Humberto Lucena), o presidente da República (José Sarney), o presidente do Supremo Tribunal Federal (José Carlos Moreira Alves) e o presidente da Câmara dos Deputados (Ulysses Guimarães), em 1º de janeiro de 1987, na abertura da Assembleia Nacional Constituinte. (Foto: Acervo Senado Federal)
     
    Os militares traçaram uma estratégia de saída do autoritarismo pensada para evitar rupturas. Ela foi organizada em três etapas. Primeiramente, a anistia de 1979 permitiu que opositores retornassem ao país e saíssem da ilegalidade. Embora eles não tenham sido imediatamente reincorporados à política institucional, ainda manipulada pelo regime, estava iniciado um processo de distensão no qual os crimes de Estado foram equiparados à resistência à ditadura. Em 1985, aproveitando-se de uma legislação eleitoral sistematicamente alterada pelo governo para garantir sua maioria parlamentar, realizaram-se eleições indiretas para presidente, contrariando o clamor das ruas nas manifestações das “Diretas Já”. E, finalmente, foi convocada uma nova Assembleia Constituinte, que deveria seguir o script das anteriores: tutelada por técnicos, promovendo ajustes mas sem permitir rupturas.
     
    É nesse momento que a narrativa se bifurca. Na primeira metade dos anos 1980, vozes ativas na sociedade civil, como a da cientista política Maria Victória Benevides e a do jurista Fábio Konder Comparato, defendiam uma Constituinte ao mesmo tempo exclusiva e soberana, ou seja, não poderia ser conduzida pelo Parlamento ordinariamente eleito, mas sim por um coletivo independente da política cotidiana, e não deveria ser limitada pela ordem anterior. Contrariamente, vozes representantes dos conservadores, como a do presidente José Sarney, as dos juristas Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Nelson Jobim, entendiam que uma emenda à Constituição vigente – a autoritária de 1969 – deveria ser parte do trajeto rumo a uma nova ordem. Por eles, a Constituinte seria derivada e limitada.
     
    A capacidade de controle do regime sobre a transição inviabilizou a primeira alternativa. Optou-se pelo caminho de uma emenda constitucional como procedimento de mudança. Ainda assim, juristas do quilate de Raymundo Faoro e Dalmo de Abreu Dallari seguiram argumentando que o modo de convocação da Constituinte não poderia limitar o alcance do processo. Sem esclarecer a controvérsia, a Emenda Constitucional nº 26 chamou por uma nova Constituinte, de forma derivada. Mas em seu artigo 1º propugnou que ela também deveria ser materialmente “livre e soberana”.
     
    Dando seguimento ao projeto e à visão de mundo da ditadura, em 18 de julho de 1985 José Sarney escalou 50 notáveis para compor a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais. Antecedendo a emenda 26, que seria publicada apenas em novembro, o grupo buscava, mais uma vez, permitir a uma elite ilustrada guiar os caminhos do processo constitucional, demonstrando o desapreço dos dirigentes pela democracia representativa. 
     
    Mas nem tudo saiu conforme planejado. Diferentemente das experiências constituintes anteriores, em que setores sociais estavam silenciados ou desorganizados, 1985 representava o ápice de um processo de retomada do espaço público pela sociedade. As campanhas pela Anistia e pelas “Diretas Já” propiciaram o reflorescimento da sociedade civil, obrigando a Comissão de Notáveis a dialogar com um contingente social que demandava direitos e exigia ser ouvido. 
     
    O anteprojeto constitucional não teve condições políticas de ser enviado ao Congresso Nacional. Pela primeira vez na história nacional, uma Constituição seria escrita sem texto-base enviado pelo governo, sem um processo decisório prévio acordado entre as elites e com reduzida tutela dos donos do poder. Ao contrário: o processo organizou-se por meio de um conjunto de mais de 20 comissões e subcomissões temáticas que passaram a produzir um anteprojeto fragmentário, posteriormente submetido a uma Comissão de Sistematização e, finalmente, a um plenário unicameral no Congresso.
     
    Apesar de seus “vícios” – como ser produzida por um Parlamento eleito para outros fins e fazer referência à Carta autoritária de 1969 – a Constituinte rompia com o controle do regime e significava um verdadeiro processo democrático. O trabalho das comissões e subcomissões temáticas contou com uma participação social sem precedentes. Foram 9.970 sugestões apresentadas aos coletivos encarregados de redigir as primeiras versões daquilo que viria a ser a nova Constituição. Tal nível de participação, por si só, representava uma brutal ruptura com os modelos de escritura constitucional anteriores, tidos em gabinetes fechados e mediados por “especialistas”, intérpretes dos desejos da nação. 
     
    Ulysses Guimarães posa levantando a nova Carta Magna de 1988. O deputado chamou-a de “Constituição Cidadã”, por ser a primeira que teve de fato a participação popular. (Foto: Arquivo Agência Brasil)Mais ainda, o regimento interno autorizava a participação popular direta. Emendas ao anteprojeto poderiam ser apresentadas por coletivos de 30 mil cidadãos, desde que propostas por pelo menos três entidades sociais representativas. Por meio deste mecanismo, 122 emendas foram levadas à votação. A despeito da aversão do regime pela participação popular, o povo foi ouvido e se fez presente no texto final, apelidado, pelo deputado Ulysses Guimarães, de “Constituição Cidadã”. 
     
    A bifurcação na narrativa sobre a Constituinte – de continuidade ou ruptura – guarda reflexos nos dias atuais. Para aqueles que a enxergam como uma extensão da ordem autoritária, o conteúdo da Constituição de 1988 encontra-se vinculado ao ordenamento constitucional ilegítimo de 1969. Para os que entendem a Constituinte enquanto ruptura, dada a natureza democrática de seus trabalhos, a nova ordem sobrepôs-se à anterior, legitimamente.
     
    Em um julgamento de abril de 2010, o impacto das opções por uma ou outra narrativa mostrou-se explicitamente no plenário do STF. Analisando a extensão da Lei de Anistia de 1979 aos crimes de Estado, progressistas como o ministro Ayres Britto apontavam para a precedência dos direitos humanos elencados na Constituição de 1988 sobre os dispositivos de impunidade impostos em 1979. De outro lado, conservadores como o ministro Gilmar Mendes clamavam pela ideia de “continuidade” entre as ordens legais. Argumentavam que, por estar vinculada à emenda 26 e à Lei de Anistia de 1979, a Constituição de 1988 não poderia dispor sobre a matéria de maneira diferente daquela posta pela ditadura. A vontade popular estaria, assim, limitada pela legalidade da ditadura. 
     
    Mantém-se, portanto, o desafio de interpretar a Constituição valorizando seu legado participativo, em oposição ao elitismo tecnocrático do regime militar. Uma interpretação genuinamente democrática do ciclo histórico inaugurado três décadas atrás não pode equiparar o direito produzido pela ditadura ao direito gerado pela democracia.
     
    Mais que uma querela historiográfica, a disputa em torno do significado de 1985 e seus desdobramentos é, hoje, simbólica. Tem a ver com os sentidos e a legitimidade de uma ditadura militar que, em nome de um suposto ideal de progresso, matou, torturou e alijou, por mais de duas décadas, o povo brasileiro do direito de escrever sua própria história.
     
    Marcelo Torelly é membro da Comissão de Altos Estudos do projeto “Memórias Reveladas” e foi coordenador de Memória Histórica da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.
     
    Saiba Mais
     
    BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História Constitucional Brasileira – Mudança Constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964. Brasília: Câmara dos Deputados, 2012.
    PILLATI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988 – Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.