- “Quem estiver hoje aqui neste comício pode dizer aos seus filhos e netos que iniciou um movimento que derrubou a ditadura militar”, discursou o já notório sindicalista Lula num comício em favor das eleições diretas, realizado em frente ao estádio do Pacaembu, em São Paulo, no final de novembro de 1983. A empolgação do público garantiu-lhe aplausos e urras, mas poucos devem ter realmente acreditado que aquele punhado de gente conseguiria tal feito: eram no máximo 5 mil pessoas.Havia tanto tempo que a ditadura se instalara e esmagara opositores armados e desarmados que, para a geração que cresceu sob a sombra do AI-5, o regime parecia eterno e invencível. Isto não quer dizer que seu prestígio junto à sociedade civil fosse o mesmo dos tempos do golpe de 1964 ou do “milagre econômico”. Desde meados da década de 1970, opositores liberais e de esquerda questionavam cada vez mais a legitimidade dos militares à frente do Estado nacional.Em 1977, os estudantes voltaram às ruas depois de praticamente nove anos sem passeatas ou protestos urbanos. Os operários retomaram as greves em 1978, e se reorganizaram novamente em torno de sindicatos combativos e aguerridos. Intelectuais e profissionais liberais se bandeavam para a esquerda, criando uma corrente de pressão que tinha especial impacto sobre a classe média, considerada o “sal da terra” para a estabilidade política e para os projetos modernizantes do regime. Até empresários fiéis aos militares e temerosos de tudo que cheirasse a socialismo e à “subversão da ordem” engrossavam o discurso da oposição, arrastados pela crise econômica e pelo excesso de intervenção estatal na economia. Era o “neoliberalismo” dando seus primeiros passos entre as vozes empresariais brasileiras. Novos partidos se formaram a partir da reforma política de 1979 – ainda que a fragmentação partidária da oposição interessasse mais aos militares no poder do que aos planos de “derrubar a ditadura”, como pregava a famosa palavra de ordem que se ouvia nos protestos.Apesar de toda essa movimentação, sempre feita em nome de valores democráticos vagos mas sedutores, a ditadura mantinha seus trunfos: possuía a caneta do poder e as armas da força. Tinha as polícias militares para cercear os protestos e os decretos para controlar o sistema político. A abertura prometia um futuro governo civil, ainda sem data prevista, mas não se comprometia com uma liberdade pública ampla, geral e irrestrita. Lançadas por volta de 1974, no início do governo Ernesto Geisel, ainda sob o nome de “distensão”, as medidas de liberalização política do regime visavam muito mais perpetuar seus princípios de “segurança e desenvolvimento” dentro de uma nova ordem constitucional do que democratizar efetivamente o Brasil. Tanto era assim que o discurso da abertura conviveu por muito tempo com censura, cassações, torturas e desaparecimentos de militantes da oposição.É bem verdade que a partir de 1979, sob o comando de João Figueiredo, o regime militar brasileiro estava mais para uma “ditadura de gravata de borboleta” – como o qualificou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – do que para um regime policialesco de terror de Estado disseminado. Mas os militares ainda mandavam e impunham limites claros ao assanhamento da sociedade e dos seus grupos mais radicais pela volta da democracia.As oposições não se entendiam quanto ao significado da palavra “democracia”. Havia vários projetos que propunham uma saída para o contexto autoritário que o Brasil vivenciava. Os liberais, mais moderados, defendiam a liberdade de expressão e de organização partidária, o fim da censura, o respeito aos direitos civis. As esquerdas, divididas entre comunistas de diversos matizes, petistas e trabalhistas – estes sob a liderança de Leonel Brizola que voltara do exílio em 1979 – queriam isso e algo mais. Para eles, a democracia deveria colocar na pauta os direitos sociais dos trabalhadores, sua participação efetiva nas decisões políticas e a busca de uma divisão de renda mais justa. Com a volta das eleições para governadores em 1982, o PMDB, que congregava os moderados, tinha se cacifado para negociar a transição política. O partido mandava nos estados mais ricos e importantes da federação. Se os grupos e os partidos de esquerda tinham influência nos protestos de rua, nos movimentos de bairro e nos sindicatos de trabalhadores, os liberais tinham voto.Foi nesse contexto, em grande parte marcado pela divisão fundamental em torno do que é democracia e do que esperar de um futuro governo eleito pelo povo, que nasceu o movimento pelas eleições diretas. Ele foi batizado, no começo de 1984, com o nome “Diretas Já”. Se aquele comício do Pacaembu no final de 1983 ainda foi reduzido e tímido, o quadro mudaria no começo de 1984. O verão louco da democracia teve início em Curitiba, com o comício realizado na “Boca Maldita”, já contando com o apoio massivo da máquina partidária do PMDB e dos governadores de oposição. O resultado deve ter surpreendido os próprios organizadores: 200 mil pessoas compareceram para ouvir discursos dos mais variados personagens públicos da sociedade brasileira: artistas, líderes partidários, jogadores de futebol e intelectuais.A percepção de que algo grandioso estava acontecendo confirmou-se com a presença de 300 mil pessoas no comício realizado na Praça da Sé, em São Paulo, no dia 25 de janeiro. A partir daí, expressões como democracia, eleições diretas e “abaixo a ditadura” passaram a fazer parte do cotidiano de milhões de brasileiros – incluindo muitos que, até então, nunca tinham ido a uma manifestação popular.O objetivo geral era simples: fazer com que o Congresso Nacional, dominado por conservadores e aliados do regime – em que pese a grande presença da oposição – aprovasse a emenda constitucional proposta pelo deputado Dante de Oliveira, de Mato Grosso. Se aprovada, ela daria aos brasileiros o direito de escolher seu próximo presidente da República. “Sem chance”, respondiam os militares. Para eles e para alguns setores civis mais conservadores, o país não estava preparado para eleger seu governante máximo. Ou seriam as elites políticas e econômicas que não estavam prontas para a democracia plena e para todas as contradições, demandas e conflitos que ela poderia trazer?A campanha das Diretas ganhou uma dinâmica própria, com presença tão grande e ecumênica nos comícios que era difícil desconsiderá-la ou desqualificá-la. A mídia liberal ficou dividida no começo entre sua fidelidade ao regime militar e o medo que as massas nas ruas sempre despertam nos mais moderados. Na Rede Globo, o “Jornal Nacional” mostrou a multidão na Praça da Sé como espectadores inofensivos numa grande festa para comemorar o aniversário de fundação da cidade de São Paulo, tentando despolitizar o sentido daquele evento grandioso e inédito. O jornal Estado de São Paulo foi comedido ao registrar o início da campanha. Já a Folha de São Paulo e a Rede Bandeirantes embarcaram nas Diretas Já: sem a censura prévia à imprensa, os fatos fizeram notícia.O governo tentou desqualificar o movimento, alegando que comunistas estavam se infiltrando nos comícios. A prova seriam as inúmeras bandeiras vermelhas nos protestos, ainda que tivessem ao seu lado as cores da bandeira brasileira – principalmente o amarelo, cor-símbolo da campanha. O clima geral de festa cívica também desmentia os militares, impedindo-os de convencer quem quer que fosse, mesmo os mais conservadores, da suposta natureza subversiva e perigosa daqueles eventos. Foram centenas de comícios realizados Brasil afora, e em nenhum deles houve tumulto, violência ou depredações. As polícias militares, apesar de controladas, na prática, pelo Exército, estavam formalmente subordinadas aos governos estaduais de oposição, que apoiavam o movimento. Por isso, o policiamento foi discreto, e não ostensivo. A contrapartida era um protesto conduzido de forma pacífica pelas lideranças, protagonizado por massas autocontroladas. Afinal, a violência deveria ir para a conta da ditadura.Mas como os bons e justos argumentos da política podem terminar na mira dos fuzis, o bom senso e a moderação do movimento foram vencidos pela força das armas e pelas artimanhas dos palácios. No começo de abril de 1984, muitas lideranças da própria oposição já se esforçavam para esvaziar o balão das Diretas Já, dizendo que a hora era de negociar com os militares e que o destino do país cabia aos profissionais da política. Os moderados, entretanto, pareciam estar na contramão da sociedade: o Rio de Janeiro colocou 1 milhão de pessoas nas ruas, com amplo apoio do governo estadual liderado por Leonel Brizola. Seis dias depois, São Paulo reuniu 1,5 milhão de manifestantes, com direito ao Hino Nacional e à Quinta de Beethoven executados pela Orquestra Sinfônica de Campinas. A votação da Emenda Dante de Oliveira estava marcada para o dia 25 de abril, e muitos deputados, mesmo da situação, balançavam ao som do grande concerto pela volta da democracia.Enquanto esse novo sopro de ânimo embalava a campanha pelas Diretas na sociedade civil, o governo militar fechou ainda mais a cara. Acenou com uma emenda alternativa prometendo eleições diretas para 1988 e decretou “estado de emergência” em Brasília e em alguns municípios de Goiás, isolando fisicamente os deputados do resto da nação. Os direitos de reunião e protesto, já restritos, foram esfumaçados de vez. Comandante militar do Planalto, o general Newton Cruz ameaçou até proibir o uso da cor amarela pelos cidadãos brasilienses. A piada da época era que queriam proibir até o brilho do sol, por causa da subversiva cor.No dia 21 de abril, discursando no comício em Ouro Preto, Tancredo Neves, uma das lideranças moderadas da oposição, deu a senha para a negociação: “Há momentos na vida dos povos em que eles não se podem dar ao luxo da divisão e das retaliações. Se divididos em facções afrontadas, estarão praticando o trágico exercício da desagregação nacional”.O 25 de abril foi um anticlímax, com a emenda das Diretas sendo derrotada por escassez de deputados: 113 parlamentares faltaram à votação e os favoráveis à emenda ficaram 22 votos aquém do quórum mínimo. As ruas se esvaziaram, como se o país estivesse numa grande ressaca ou depressão coletiva. Em algumas cidades houve reações violentas, mas a imprensa e as principais lideranças do movimento não endossavam a ocupação das ruas a qualquer custo: a multidão, antes gloriosa, agora era chamada de baderneira.Aqueles que defendiam o enfrentamento da ditadura por meio de eleições indiretas sabiam que era possível se aproveitar das divisões políticas do campo do governo e vencer o pleito. Vários candidatos queriam ser ungidos pelo presidente Figueiredo e se aproveitar da máquina oficial para a campanha. Pressionado, o general não conseguia se decidir. Durante este vácuo, no outro flanco nascia a candidatura de Tancredo Neves, político moderado e de confiança mesmo para setores militares. A partir do segundo semestre de 1984, seu nome ganhou força e arrebanhou dissidências do regime. A transição pelo alto, dentro das regras do poder, estava garantida. Uma parte das massas voltou às ruas, comparecendo aos comícios da candidatura Tancredo, mas sem o mesmo grau de intensidade e amplitude do movimento pelas Diretas Já.Como milhões de pessoas nas ruas não conseguiram derrotar um regime isolado e desprestigiado, nem dobrar seus representantes no Congresso? Qual seria o projeto de democracia que se desenhava nas ruas? Seria o voto direto um símbolo vazio de sentido, uma bandeira frágil que se rasgou na primeira adversidade? No animado verão de 1984, o Brasil viveu uma breve, poética e frágil primavera democrática. Que até hoje desafia quem tenta analisá-la.Marcos Napolitano é professor da Universidade de São Paulo e autor de 1964: História do Regime Militar Brasileiro (Editora Contexto, 2014).Saiba MaisKOTSCHO, Ricardo. Explode um novo Brasil: Diário da campanha das Diretas. São Paulo: Brasiliense, 1984.RODRIGUES, Alberto Tosi. Diretas Já. O grito preso na garganta. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.
Todo mundo na rua, de blusa amarela
Marcos Napolitano