Vitória dos derrotados

Gislene Lacerda

  • A democracia brasileira se aproxima do auge de sua vida adulta. São 30 anos desde que o primeiro presidente civil foi eleito pelo Colégio Eleitoral. Distante no tempo, aquela virada histórica começa a parecer esmaecida aos olhos de hoje. Como explicar que após 21 anos de governo militar a ditadura tenha saído de cena “envergonhada” e “derrotada”? Nas respostas a esta pergunta, talvez resida um elemento pouco lembrado: a força da sociedade civil organizada na luta política. 
     
    O ano de 1974 apresentava um cenário duplo. Se, por um lado, o general Ernesto Geisel iniciava o projeto militar de distensão “lenta, gradual e segura”, paralelamente a sociedade civil vivia um novo fôlego para lutar contra a ditadura, após anos de abafamento pela dura repressão. Diferentes movimentos sociais e de esquerda foram responsáveis por alargar os limites impostos pelo projeto militar, assumindo papel importante na reconstrução da democracia. 
     
    Novos atores ganharam destaque, outros se reformularam e fortaleceram. Entre eles, o novo sindicalismo do ABC paulista, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) – partido político de oposição dentro do sistema bipartidário – que obteve significativas vitórias eleitorais em 1974 e 1978, organizações profissionais como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Igreja Católica – em especial através da Teologia da Libertação e das Comunidades Eclesiais de Base – o movimento estudantil e os chamados “movimentos de diferença” – que incluíam as feministas, os negros, os indígenas e os gays.
     
    Vivia-se um processo de autocrítica após a derrota da luta armada. Era o momento da busca por novas táticas, vinculadas às liberdades democráticas. Apesar das divergências ideológicas na interpretação sobre o que significava a democracia que desejavam construir, grande parte da esquerda uniu-se em torno dessa bandeira. 
     
    A democracia foi construída em meio a conflitos. Eles se deram na rua, sob a marca da mobilização social, fruto de um processo de acúmulo de insatisfação social e de forças que se articulavam. Eventos como a missa de sétimo dia de Alexandre Vannucchi Leme – estudante de geologia da USP, morto pelo regime em 1973 – e o culto ecumênico de sétimo dia de Vladmir Herzog – jornalista assassinado pelos militares em 1975 – reuniram milhares de pessoas que pacificamente se manifestaram contra as arbitrariedades da ditadura. Ações como estas despertavam para a possibilidade e a necessidade de se avançar cada vez mais contra o regime. 
     
    Pioneiro nesse processo, o movimento estudantil buscou se reorganizar por todo o país. Começou pela reconstrução de Centros Acadêmicos (CAs) e Diretórios Centrais dos Estudantes (DCEs), enfim livres do controle e da intervenção militar. A USP teve papel precursor: em 1976 reabriu seu DCE, que acabou assumindo o papel de aglutinador da luta estudantil nacional. 
     
    Em março do ano seguinte, os universitários ganharam as ruas pela primeira vez desde 1968, em uma passeata que saiu da USP e foi até o Largo de Pinheiros, em São Paulo. Foi o passo inicial da retomada dos espaços públicos e da mobilização social pelas liberdades democráticas. Dois meses depois, uma grande manifestação seguiu pelo Viaduto do Chá contra a prisão de estudantes que panfletavam na região do ABC por ocasião do Dia do Trabalho. Estas primeiras mobilizações paulistas foram como o “apito da panela de pressão”: protestos semelhantes se espalharam, colocando todo o país em ebulição. A repressão militar foi intensa. Exemplo da fúria do regime contra os estudantes aconteceu em setembro de 1977, quando o coronel Erasmo Dias invadiu e destruiu o prédio da PUC-SP ao ser informado da realização do III Encontro Nacional de Estudantes (ENE). O evento visava criar uma comissão para rearticular a UNE, que estava na ilegalidade desde 1964 por definição da Lei Suplicy Lacerda, e totalmente desmantelada desde 1973, quando seu último presidente, Honestino Guimarães, desapareceu nas mãos dos militares. 
     
    A partir de 1978, o movimento operário assumiu um importante espaço na luta democrática. O novo sindicalismo e as greves da região do ABC paulista ampliaram a força da oposição e deram a ela maior expressão devido ao impacto gerado pela paralisação da classe operária na economia brasileira. A ditadura já não mais se sustentava. No final de 1978 foi revogado o AI-5, o mais repressivo instrumento do regime, em vigor havia uma década. No ano seguinte, a UNE estava reconstruída e conquistava-se para os opositores da ditadura a anistia, após anos de uma luta política que aglutinara as diferentes expressões sociais sob a bandeira “Pela anistia ampla, geral e irrestrita”. 
     
    Vitória ou frustração? Afinal, a anistia não contemplava os anseios sociais, pois isentava de julgamento também os torturadores e não se aplicava a todos – excluía aqueles envolvidos nos chamados “crimes de sangue”. 
     
    A campanha a favor das “Diretas Já”, em 1984, foi mais um importante passo no renascimento da democracia, envolvendo artistas, intelectuais, operários, estudantes, esquerdas e muitas outras forças políticas que se reuniram em grandes comícios e passeatas por todo o país. O movimento desejava dar um fim à ditadura através das eleições diretas para presidente da República. Mais uma vez, o anseio popular não foi atendido. Tancredo Neves, eleito de forma indireta, morreu antes de sua posse. E o primeiro presidente civil acabou sendo seu vice, José Sarney, político vindo da Arena – partido ligado ao regime militar. Ruptura ou continuidade? 
     
    Não se pode negar que, como fruto do caráter negociado da transição brasileira, nossa democracia começou com problemas. Nem mesmo seu marco inicial é consenso entre os historiadores. Muitos entendem o final do processo de transição com a eleição de Tancredo Neves em 1985. Outros defendem que a democracia teve início, de fato, em 1988, com a promulgação da nova Constituição. Um terceiro grupo considera que o novo regime só passa a vigorar com a primeira eleição direta para presidente, em 1989, quando Fernando Collor saiu vencedor. Há, por fim, um outro grupo que acredita que ainda hoje a transição se encontra inconclusa, em especial pela ausência de um “acerto de contas” com o passado ou por identificarem limites na democracia constituída.
     
    Pelo olhar dos movimentos sociais e das organizações de esquerda que militaram durante o período da transição, não há derrota. Para eles, a democracia foi fruto de um processo vitorioso no campo da mobilização e da luta política. “Se a ditadura acabou com a luta armada, quem acabou com a ditadura? Foi a mobilização democrática, a ampla frente democrática que unia desde os comunistas até a turma que apoiava a ditadura e desistiu de apoiar depois de um certo tempo. (...) A ditadura foi derrotada pela rua, não foi derrotada pelo fuzil. E a rua começou a ser mobilizada pela gente, em 1977”, argumenta Alon Feuerwerker, ex-militante estudantil da USP.
     
    Esse discurso revela uma visão compartilhada por grande parte dos movimentos sociais que atuou naquele período: a tática da luta armada, que vigorou com maior expressão entre a esquerda de 1968 e 1973, é vista como um equívoco. O fator-chave para o fim da ditadura teriam sido os movimentos de massa, de caráter amplo e democrático, que ocuparam as ruas do Brasil entre meados das décadas de 1970 e de 1980. Alargando os limites da transição desejada pelos militares, eles construíram um novo começo para nossa história democrática.
     
    Gislene Lacerda é professora da Universidade Nove de Julho e autora de Memórias de Esquerda: o Movimento Estudantil em Juiz de Fora de 1974 a 1985 (Editora Funalfa, 2011). 
     
    Saiba Mais
     
    ARAUJO, Maria Paula N. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
    REIS, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.  
    SADER, Emir (org.). Movimentos sociais na transição democrática. São Paulo: Cortez, 1987.