Grandes transformações – aumento do trabalho assalariado e da imigração estrangeira, crescimento industrial, dinamismo das atividades econômicas etc. – ocorreram no Brasil depois da proclamação da República. O reverso das mudanças foi a crise que se abateu sobre o país nos anos 1890 e 1891, particularmente nas praças comerciais do Rio de Janeiro e São Paulo. Ficou conhecida como Encilhamento, expressão extraída do vocabulário turfista. Designava o clima de confusão, desordem e febril jogatina que reinava nos locais das corridas onde os jóqueis encilhavam seus cavalos.
A visão que se tem desses anos é de loucura completa. Corretores obtinham lucros extraordinários. As mudanças na taxa de câmbio faziam e desfaziam riquezas. Todos jogavam na bolsa. Essas imagens de caos e desvario podem ser encontradas em peças de teatro do período (O Encilhamento, cenas contemporâneas da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, 1890, 1891 e 1892, do monarquista visconde de Taunay, e Tribofe, de Artur Azevedo) ou nas análises econômicas conservadoras feitas nos anos 1920 por João Pandiá Calógeras e Antônio Carlos de Andrada.
Tal perspectiva, que se consolidou na memória coletiva e assim chegou até nossos dias, tem sido questionada hoje não para negar que nos primeiros anos republicanos houve inflação e falências, mas para acrescentar que também se registrou, na época, um importante crescimento industrial. A palavra Encilhamento passou a designar tanto a política econômica como a crise financeira. Embora três ministros tenham sido responsáveis pelo comando da economia no período – o visconde de Ouro Preto, Rui Barbosa e o barão de Lucena –, o estigma da crise ficou associado à gestão de Rui. Sua política monetária expansionista é comumente apontada como responsável pelos descalabros financeiros do período.
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No final do Império, a riqueza do Brasil dependia das atividades rurais: 80% da produção agrícola era destinada à exportação. A venda de café, açúcar e borracha − produtos nativos − a empresas estrangeiras gerava os recursos em moedas estrangeiras necessários para o consumo e formação de capital. Pagava também a dívida externa e financiava o próprio governo, através das receitas do comércio exterior. A abolição do trabalho escravo, embora já fosse esperada, provocou no entanto novas exigências. Os fazendeiros necessitavam agora de dinheiro para pagar seus trabalhadores agrícolas e também as hipotecas, antes garantidas por seus escravos.
Pressionado pelos fazendeiros por crédito, e vendo a monarquia em perigo, o Império promoveu uma reforma do sistema bancário, através do decreto nº 3.403, de 24 de novembro de 1888, para assegurar dinheiro fácil ao mercado. Os bancos recebiam esse dinheiro do Tesouro sem juros, por prazos que variavam de sete a 22 anos. Deviam emprestar à lavoura o dobro do empréstimo recebido, num prazo de vencimento de um a 15 anos, com juros de 6% ao ano.
Os bancos que receberam esses empréstimos (chamados “auxílios à lavoura” – daí a expressão popular “salvação da lavoura”) viviam uma situação de privilégio, e logo cresceu a procura pelas ações dessas instituições. Fundar bancos era o grande negócio daquele momento, a maneira de usufruir os mesmos favores que já eram concedidos aos bancos antigos. O governo imperial esperava que o resultado final desse processo fosse a formação de um sistema bancário forte, mas redundou numa severa crise econômica, que iria influenciar a política econômica da República nascente.
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O abalo causado pela queda do Império, em 1889, repercutiu nos negócios. O novo regime inquietou os banqueiros e comerciantes, que, diante da instabilidade política, fizeram grandes remessas de ouro para o exterior. Rui Barbosa, primeiro ministro da Fazenda republicano, encontrou a praça comercial e bancária do Rio de Janeiro e São Paulo em franca ebulição, vivendo uma onda de negócios que antes nunca ocorrera, sendo que esse quadro se estendia a outras capitais. Ele considerava que, entre 13 de maio de 1888, data da Abolição, e 15 de novembro de 1889, dia da Proclamação da República, se registrara no Rio de Janeiro um crescimento extraordinário do capital das companhias. Era preciso, então, uma expansão monetária de grandes proporções para atender as necessidades dos negócios.
O novo plano econômico, transformado em lei pelo decreto de 17 de janeiro de 1890, conservava a essência da Lei Bancária de 1888: dava prosseguimento aos empréstimos à lavoura e autorizava a utilização de títulos públicos como cobertura para a emissão. O país foi dividido em três regiões bancárias (Norte, do Amazonas à Bahia; Centro, incluindo os estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná e Santa Catarina; e Sul, abrangendo Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Goiás), autorizadas a emitir dinheiro mediante a garantia de apólices da dívida pública. Os bancos deviam formar um fundo de 10% sobre seus lucros brutos e, com esses recursos, amortizariam a dívida pública.
Houve uma grita geral contra o privilégio dos bancos emissores. O governo acabou capitulando e admitindo que outros estabelecimentos fossem também credenciados e, assim, provocou um aumento no papel-moeda, que passou a ser emitido num volume bem acima das necessidades econômicas da sociedade. Rui, tentando ganhar a boa vontade dos fazendeiros e comerciantes, autorizou bancos privilegiados a emitirem notas lastreadas em bônus do governo. Isso atendeu ao interesse da elite proprietária, mas facilitou ações desonestas e o descalabro que se registrou na Bolsa de Valores. As transações limitaram-se no princípio aos negócios legítimos, restringindo-se aos títulos bancários. Depois, havendo dinheiro fácil na praça, surgiram em pouco tempo centenas de novas sociedades comerciais, cujas ações eram vendidas na Bolsa sem qualquer garantia real, a não ser a esperança de que servissem de lastro para um futuro empreendimento industrial.
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“Brincava-se com crédito, o nome e o porvir da nação”, como registrou Taunay em 1894, embora a nuvem de papel que envolveu o mercado gerando a bolha especulativa do Encilhamento não tenha crescido a partir de bases totalmente fictícias. No segundo semestre de 1891, Rui foi substituído pelo barão de Lucena, que tentou salvar o governo, fazendo crescer as atividades econômicas e encorajando os bancos emissores a ampliarem o crédito. O malogro dessa experiência acabou derrubando não apenas o ministro mas o próprio presidente, Deodoro da Fonseca, substituído pelo vice Floriano Peixoto.
A primeira crise econômica da República não foi muito diferente de outras que a sucederam. A queda da atividade econômica, tanto ontem como hoje, provoca desemprego, inflação, recessão e crise cambial. Os papéis negociados na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, ao caírem de preço, levaram à ruína milhares de pequenos investidores e mesmo fazendeiros fluminenses. A excitação dos negócios, a especulação e a inflação acabaram transformando o breve experimento do ministro Rui Barbosa numa aventura. Como não havia um banco central ou outro órgão de supervisão bancária para regulamentar essas operações, a idéia de moeda crédito transformou-se em sinônimo de anarquia.
Apesar de tudo, muitas das companhias surgidas naqueles dias sobreviveram e se tornaram prósperos empreendimentos industriais. O exemplo mais notável foi o das companhias têxteis, cujo capital integralizado na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro mais que dobrou, entre maio e novembro de 1890. Em São Paulo, de fevereiro a julho de 1890, surgiram mais de duzentas sociedades anônimas, e em agosto do mesmo ano foi fundada a Bolsa de Valores daquele estado. Certamente a política de Rui acelerou o processo de formação de capital, e a notável expansão do crédito proporcionou volume de capital para novas indústrias têxteis, sobretudo no Rio de Janeiro.
Hildete Pereira de Melo é professora da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutora em economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autora de “Coffee and development of the Rio de Janeiro economy, 1888-1920”, publicado em The global coffee economy in Africa, Asia and Latin America, 1500-1989 (Cambridge University Press, 2003), organizado por William Clarence-Smith e Steven Topik.
A primeira crise
Hildete Pereira de Melo