Bravas inconfidentes

André Figueiredo Rodrigues

  • Nos versos de Marília de Dirceu , o poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) imortalizou seu amor pela jovem Maria Dorotéia. Poucos dias antes de se casar, ele foi acusado de participar da Inconfidência Mineira. Exilado na África, nunca mais deu notícias ou voltou ao Brasil. Maria Dorotéia Joaquina de Seixas (1767-1853) jamais se recuperou desse desfecho infeliz. Mesmo assim, acabou virando a “noiva da Inconfidência”. E inspirou muitos mitos. O mais popular diz que as mulheres envolvidas na rebelião acabaram enlouquecidas, isoladas do mundo e em extrema pobreza. Mas a história não é bem assim. Pelo menos para Bárbara Eliodora e Hipólita Jacinta.

    Quando jovem, Bárbara Eliodora Guilhermina da Silveira era uma moça encantadora, a ponto de inspirar o poeta Alvarenga Peixoto, que a descrevia como dona de lindas covas no rosto, roliços braços, pés delicados e gentil cintura na lira “Retrato de Anarda”. Nascida em 1759 na vila de São João del Rei, era a filha mais velha do advogado José da Silveira e Sousa. Aos 18 anos, ela conheceu o poeta carioca Inácio José de Alvarenga Peixoto (1742-1789), então ouvidor (funcionário da Justiça) na Câmara de São João, comarca de Rio das Mortes. Quem ocupava esses cargos não podia comprar propriedades ou se envolver em negócios na região de atuação. Era uma maneira de evitar que os funcionários reais entrassem nas redes de interesses locais. Mas Alvarenga Peixoto, como era mais conhecido o ouvidor-poeta, não estava muito preocupado com isso. Logo que chegou à região, tratou de driblar a legislação: adquiriu uma grande fazenda em Paraopeba em nome do irmão de Bárbara Eliodora.

    As relações com a família Silveira e Sousa foram além dessas negociatas. Encantado com a jovem Bárbara – que tinha “porte de deusa, Espírito Nobre” –, o poeta recebeu a aprovação do doutor José para o namoro. Em pouco tempo, Alvarenga e Bárbara já estavam morando juntos, mas sem oficializar a união na Igreja. A relação provocava repreensões públicas do padre Antônio Caetano de Almeida, um obstinado e feroz seguidor dos preceitos católicos. E até mesmo pasquins distribuídos por São João del Rei denunciavam aquela “escandalosa prostituição”. Com tanta pressão, eles acabaram se casando, por conta de uma portaria do bispo de Mariana, em dezembro de 1781, pelas mãos de Carlos Correia de Toledo, vigário da vila de São José del-Rei e amigo de Alvarenga Peixoto. Na época, a filha do casal, Maria Efigênia, já estava com dois anos.        
    Após o seu mandato na ouvidoria, o poeta carioca passou a se dedicar à mineração e à agricultura. Quando foi detido, em 1789, sob a acusação de fazer parte de um levante que se pretendia organizar em Minas Gerais, possuía a maior fortuna entre os inconfidentes. Os bens do casal foram sequestrados em 13 de dezembro, na casa do arraial de São Gonçalo. Orientada por amigos, Bárbara Eliodora enviou um requerimento ao governador de Minas, o visconde de Barbacena, alegando que era casada com comunhão de bens e, conforme a lei, era necessário abrir um inventário e dividir o patrimônio. O pedido foi logo atendido, e somente a metade de Alvarenga Peixoto foi confiscada. Velho amigo da família, o ouvidor Luís Ferreira de Araújo e Azevedo fez mais: aumentou significativamente a parte de Eliodora e facilitou as negociações com credores impacientes, que esperavam receber o pagamento de dívidas contraídas pelo marido.

    Só que Bárbara ainda não parecia satisfeita. Para preservar todo o patrimônio familiar, tratou de encaminhar cartas ao seu compadre João Rodrigues de Macedo, implorando que o amigo arrematasse o montante de Alvarenga num leilão. Proprietário do imóvel da Casa dos Contos em Ouro Preto, ex-contratador de entradas e dízimos e, àquela época, maior devedor de impostos de Minas Gerais, Macedo comprou tudo e ainda se prontificou a pagar as dívidas. Mas o gesto não era apenas uma confirmação de sua amizade. Antes de fechar o negócio, ele trocou correspondência com os feitores e administradores das propriedades de Alvarenga Peixoto em Campanha do Rio Verde e em São Gonçalo. Queria ter certeza de que aquelas terras ainda eram lucrativas. Pelas listagens de rendimentos da fazenda Engenho dos Pinheiros, pôde confirmar que, de 1796 a 1798, a produção de açúcar e a extração de ouro mais que dobraram. Já a produção de cachaça aumentara oito vezes, passando de 66 barris no primeiro ano para 528 no último período. Segundo a devassa, ou inquérito, Alvarenga Peixoto possuía terras e lavras avaliadas em mais de 80 contos de réis, o que daria para comprar, na época, 80 sobrados em Vila Rica ou 1.000 escravos.

    Após o processo, Bárbara permaneceu com propriedades, entre elas oitenta escravos (que não apareciam descritos na avaliação dos sequestros), móveis e objetos de prata que totalizavam mais de 12 quilos. Com seu temperamento forte, passou a administrar os negócios com firmeza e ampliou bastante o patrimônio deixado pelo marido. Comprando e vendendo escravos e terras, contabilizava lucros líquidos de quase cinco contos de réis ao ano, rendimento bem superior aos de propriedades das redondezas.

    Outra mineira que se destacou na história da Inconfidência foi Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, nascida no arraial de Prados em 1748. Era filha de Clara Maria de Melo e de Pedro Teixeira de Carvalho, capitão-mor da vila de São José (atual cidade de Tiradentes), de quem herdou fortuna. Casada com o coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes (1750-1800), nunca teve filhos legítimos. Mas o casal criou duas crianças: Francisco da Anunciação Teixeira Coelho e Antônio Francisco Teixeira Coelho, filho ilegítimo de Maria da Silveira Bueno (irmã de Bárbara Eliodora) e do capitão Antônio José Dias Coelho.

    Única mulher que participou da rebelião de 1789, Hipólita é citada em dois episódios registrados nos Autos da Devassa. Ela tinha pleno conhecimento das discussões sobre o levante que se pretendia fazer em Minas Gerais e participava ativamente em 1789. Ela destruiu uma denúncia completa que Francisco Lopes escrevera para levar pessoalmente ao governador, visconde de Barbacena, delatando o movimento. Também ateou fogo em todos os papéis que julgou poder incriminá-los.

    Numa carta enviada em maio de 1789 ao marido, acolhido na Fazenda Paraopeba, denunciou a traição de Joaquim Silvério dos Reis e mencionou o destino de outros inconfidentes. Sem mostrar muitas dúvidas, dizia que “se acham presos, no Rio de Janeiro, Joaquim Silvério e o Alferes Tiradentes para que vos sirva, ou se ponham em cautela; e quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas; e mais vale morrer com honra que viver com desonra”.  

    Nesse mesmo mês, Tiradentes, Tomás Antônio Gonzaga, o padre Carlos Correia de Toledo e Alvarenga Peixoto foram presos.  Dona Hipólita não escapou das punições. Acusada de participar da sedição, perdeu todos os bens e ainda ficou sem direito à partilha conjugal. Inconformada com a situação, escreveu diretamente ao Secretário do Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, em Lisboa. Argumentava que boa parte do patrimônio sequestrado era uma herança paterna. A estratégia deu certo. Com despacho favorável, recuperou sua fazenda da Ponta do Morro e alguns bens que restaram. E conseguiu resguardar o patrimônio. Em seu testamento, redigido em 27 de abril de 1828, consta que tinha fazendas, lavras e escravos.

    Como se vê, Bárbara Eliodora e Hipólita Jacinta estavam bem distantes das mineiras passivas e solitárias apresentadas pela literatura e pelos livros de História. Elas sabiam dos planos de seus maridos e até tentaram impedir que denunciassem companheiros. Após a prisão dos inconfidentes, assumiram a direção dos negócios e defenderam seus interesses. Mesmo sem terem participado da articulação política do movimento de 1789, essas mulheres obstinadas lutaram por seu patrimônio e por sua própria história.

    ANDRÉ FIGUEIREDO RODRIGUES é professor de História nas Faculdades Integradas de Ciências Humanas, Saúde e Educação de Guarulhos e autor da tese “Estudo econômico da Conjuração Mineira: análise dos sequestros de bens dos inconfidentes da comarca do Rio das Mortes” (USP, 2008).

    Saiba Mais - Bibliografia

    JARDIM, Márcio. A Inconfidência Mineira: uma síntese factual. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1989.
    MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa. A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750-1808. 3ª ed. Trad. João Maia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
    REIS, Liana Maria. “A mulher na Inconfidência (Minas Gerais–1789)”. Revista do Departamento de História. Belo Horizonte: Fafich/UFMG, nº 9, p. 86-95, 1989.