Contra quase tudo

Lorenzo Aldé

  • O Brasil já nasceu livre da ameaça republicana. Isso era o que garantia José Bonifácio em 1823. “Este partido é hoje miserável e abandonado por todo homem sensato”, proclamou o Patriarca da Independência.

    Puro discurso político. Bonifácio bem sabia que a decisão de separar o Brasil de Portugal, em atenção aos interesses das províncias do Sudeste, encontrara forte resistência entre homens sensatos de outras partes do país. Não poderia supor que o regime escolhido para nos governar – uma continuidade da tradição monarquista lusitana – seria acatado pacificamente. O Brasil foi um Império pontilhado de Repúblicas por todos os lados.

    Nas mentes contestadoras, a inspiração vinha do Norte. Conquistada em 1783, a independência das ex-colônias britânicas criara uma inédita composição de “Estados Unidos”, na forma de uma confederação republicana. Os ideais da Res publica – expressão do latim para definir a “coisa pública” – estavam lá: um governo voltado a atender aos interesses “do povo” (escravos fora), livre da subserviência à monarquia ou à tirania.

    Apenas seis anos depois, e no mesmo ano da Revolução Francesa, as Minas Gerais foram palco da primeira aventura republicana brasileira. Na rica capitania, o interesse do “povo” era livrar-se dos escorchantes impostos a que era submetido pela Coroa portuguesa. Não à toa, um dos conspiradores, José Álvares Maciel, acabara de chegar de viagem à Inglaterra, onde adquirira conhecimentos em “manufaturas e mineralogia”, concluindo que “os nacionais desta América não sabiam os tesouros que tinham, e que podiam aqui ter tudo se soubessem fabricar”. Pelas nações estrangeiras por onde tinha andado, testemunhara espanto geral por Minas Gerais não ter seguido o exemplo da América inglesa.

    Alguns anos antes, em 1787, José Joaquim Maia e Barbalho, natural do Rio de Janeiro e estudante na França, chegara a encontrar o principal autor da “Declaração de Independência” dos Estados Unidos, de 1776, Thomas Jefferson, a quem pediu apoio para um levante que envolveria Minas, Rio e Bahia. Jefferson, que era embaixador norte-americano na França, afirmou ao secretário de Negócios Estrangeiros do seu país que “um governo republicano único seria instalado” caso o projeto revolucionário fosse adiante.

    Outro participante da Inconfidência Mineira, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, vulgo Tiradentes, buscava apoiadores para a nova causa descrevendo um cenário sedutor, em que “esta terra se fizesse uma República, e ficasse livre dos governos, que só vêm cá ensopar-se em riquezas de três em três anos, e quando eles são desinteressados, sempre têm uns criados que são uns ladrões” – como ele próprio relataria no processo que investigou a conspiração.

    República significava autonomia política. Questões secundárias, como quem seriam os cidadãos e quais seriam seus direitos, não chegaram a virar consenso. A escravidão não foi obstáculo para os libertadores dos Estados Unidos nem para os republicanos mineiros. A situação dos negros preocupava apenas por suas implicações econômicas e por seu peso na revolução. José Álvares Maciel lembrou que os escravos eram maioria, “e que para conseguirem liberdade tomariam o partido contrário, matando os brancos”. Chegou-se a propor que lhes dessem a liberdade para que aderissem à revolta, mas Maciel ponderou possíveis prejuízos à produção: “(...) não ficaria em boa ordem o serviço das Minas”.

    Em Pernambuco, as aspirações por autonomia vinham de longe. Segundo o historiador Evaldo Cabral de Mello, as províncias que haviam estado sob domínio holandês tinham sentimentos decididamente republicanos. Ele também lembra que, no início do século XIX, era constante o intercâmbio entre a elite local e os Estados Unidos. Movimentos de emancipação ocorriam em toda a América, e os cônsules norte-americanos atuavam como verdadeiros agentes políticos no continente, vendendo seu modelo confederado como a melhor receita de autogoverno. Em 1817, Pernambuco declarou-se independente. Copiando a Revolução Francesa, a República publicou uma “Declaração dos Direitos Naturais, Civis e Políticos do Homem”, defendendo princípios até hoje sagrados para a democracia, como a liberdade de consciência e de imprensa e a tolerância com todos os cultos religiosos.

    Aos escravos, a cidadania continuava inacessível até segunda ordem. Mas enquanto as classes altas visavam apenas livrar-se do poder central, nas camadas populares a independência alimentava o sonho da igualdade. “Os cabras, mulatos e crioulos andavam tão atrevidos que diziam que éramos todos iguais e não haviam de casar senão com brancas das melhores”, narrou uma carta em Recife pouco depois do fim da revolução – que durou apenas dois meses.

    Sete anos depois, em 1824, o atual Nordeste voltaria a proclamar-se livre. A novidade foi o formato de governo: em vez de simples república, uma confederação de estados como a dos norte-americanos. Ameaça também pressentida por José Bonifácio um ano antes. No mesmo discurso em que chamou os republicanos de “abandonados”, ele qualificou os federalistas de “incompreensíveis”, ou “bispos sem papa”. E explicou: “Não querem ser republicanos de uma só república, querem um governo monstruoso, um centro de poder nominal e cada província uma pequena república, para serem nelas chefes absolutos, corcundas despóticos”. Como ele temia, o governo “monstruoso” virou realidade: reunindo Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, a Confederação do Equador foi arrasada pelas tropas imperiais seis meses depois de nascer. O movimento teria perdido força quando alguns líderes mais inflamados, como frei Caneca e Cipriano Barata, defenderam o fim do tráfico negreiro. A arcar com este prejuízo, os grandes proprietários preferiam continuar submissos ao Rio de Janeiro. Frei Caneca acabou fuzilado.

    A imprensa refletia o acirrado debate político que literalmente dividia o país. “República não é para o Brasil!”, exclamou em sua capa o Novo Diário da Bahia, em 30 de novembro de 1837. Um panfleto em apoio à Corte fluminense? Ao contrário: o jornal era editado pelo médico Francisco Sabino Vieira, líder do Estado independente proclamado em Salvador no dia 7 daquele mês. Em homenagem a ele, o movimento ficou conhecido como Sabinada. O artigo questionava a tese que vinha do Sudeste, segundo a qual a realidade brasileira era incompatível com o regime republicano.

    Na prática, porém, nem mesmo os sabinos sabiam ao certo que rumo político tomar.  “Os rebeldes militares e civis que tomaram a cidade e expulsaram o governo provincial pareciam ser republicanos. Prometeram convocar uma assembléia constituinte e elegeram um presidente e um vice-presidente. Mas, no dia 11, o próprio vice-presidente eleito, João Carneiro da Silva Rego (...) requereu que a Câmara limitasse a duração da independência à menoridade de D. Pedro II, que terminaria no dia 2 de dezembro de 1843”, relata o historiador Hendrik Kraay em artigo inédito para o site da RHBN. Foi uma “república suicida”.

    Em alguns momentos, os rebeldes ostentavam verdadeira ojeriza à monarquia. Como quando apagaram a inscrição de um obelisco que lembrava a chegada de D. João a Salvador, em 1808: “um déspota sanhudo e ingrato [que] veio infeccionar[-nos] com o bafo pestífero da corte portuguesa”. Mas no dia 2 de dezembro festejaram o “Glorioso Aniversário do natalício” do menino imperador D. Pedro II com salvas de artilharia, cortejo e a iluminação dos edifícios públicos. O autor tenta explicar a contradição: “Símbolo poderoso, a monarquia estava profundamente enraizada na sociedade brasileira”, escreve Kraay.

    Enquanto o hesitante novo governo baiano sucumbia ao massacre das tropas imperiais – que deixaram por lá um rastro de mais de mil mortos –, no Sul se instituía a República Rio-Grandense, que resistiria a quase dez anos de guerra civil. O modelo escolhido, mais uma vez, foi o federativo, e as causas principais, as econômicas. “Combatiam o excesso de tributos do Estado brasileiro e propugnavam pela permanência do imposto no local de origem, pois, na época, dois terços iam para a Corte para obras inúteis, restando um terço para a província do Rio Grande do Sul pagar funcionários, construir a infraestrutura e sustentar a tropa militar nas guerras de fronteira”, explica o professor Moacyr Flores, da PUC-RS, também autor de artigo especial em nosso site.

    A Guerra dos Farrapos (1835-1845) confirma que República não era sinônimo do que entendemos hoje por democracia. “Na época, não se discutia e nem se aceitava a participação popular, por ser considerada uma forma impura de política conforme a doutrina liberal. Não foram aceitas as ideias democráticas da Jovem Itália, de Mazzini. Por publicar essas ideias, o redator Luigi Rosseti foi expulso da oficina do jornal O Povo, órgão oficial da República Rio-Grandense”, conta Flores, referindo-se ao revolucionário Giuseppe Mazzini (1805-1872), que defendia a igualdade radical entre os cidadãos.

    Ao contrário do que vaticinou José Bonifácio, o Partido Republicano só fez ganhar força, inclusive graças à liberdade de associação e imprensa garantida pelo próprio imperador D. Pedro II (ver box). Se hoje consideramos os “valores republicanos” o que há de mais progressista em termos políticos, no século XIX as cartas estavam embaralhadas. Nem sempre os partidários do republicanismo defendiam o fim da escravidão e a reforma agrária, por exemplo.

    Nos séculos XX e XXI, nossa República – apesar dos trancos e barrancos ditatoriais no meio do caminho – consolidou-se e ampliou enormemente os direitos dos cidadãos. Mas a tortuosa trajetória do republicanismo brasileiro deixa uma lição sempre válida: de nada valem princípios igualitários formais se a cultura da desigualdade impede seu cumprimento. Como diz a voz do povo: “na prática, a teoria é outra coisa”.

    OLHOS (pra escolher 2)
    República significava autonomia política. Questões secundárias, como quem seriam os cidadãos e quais seriam seus direitos, não chegaram a virar consenso

    “Os cabras, mulatos e crioulos andavam tão atrevidos que diziam que éramos todos iguais”
    Os rebeldes baianos tinham relação ambígua com a monarquia. D. João era “déspota ingrato”, mas festejaram o “glorioso aniversário” de D. Pedro II

    Saiba Mais - Bibliografia:

    MAXWELL, Kenneth. A Devassa da Devassa: A Inconfidência Mineira, Brasil e Portugal (1750-1808). 7ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
    MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Ed. 34, 2005.
    SOUZA, Paulo César de. A Sabinada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.