Como se inicia uma revolta? Como homens de diferentes grupos sociais e interesses diversos resolvem se unir, dispostos até a pegar em armas para reivindicar direitos? Um ingrediente fundamental para que isso aconteça é a circulação de ideias. Com a Conjuração Baiana (1798) – que lutou por mudanças, como a liberdade de comércio e o fim da ordem escravista na colônia – não foi diferente. Conhecida pela mobilização dos sapateiros, militares, alfaiates e escravos, a revolta foi articulada em encontros clandestinos que ajudaram a espalhar os ideais que levaram à sedição.
Em conversas e reuniões secretas na periferia de Salvador ecoaram os princípios da Revolução Francesa (1789) que desestruturaram o Antigo Regime. Em 1793, começaram a aparecer os sinais de simpatia pela França e por seu regime republicano. Traduções, cópias e trechos de livros e documentos franceses passavam de mão em mão na cidade. Jantares com carne em plena Sexta-feira Santa demonstravam uma atitude de desprezo pela tradição católica, intimamente relacionada às monarquias absolutistas da França e de Portugal.
A movimentação desagradava ao governo colonial, que sentia a sombra de uma ameaça. Cartas enviadas a Lisboa denunciaram o presbítero e rico comerciante Francisco Agostinho Gomes por crime de “francesia”, isto é, divulgação das ideias revolucionárias francesas. Outro alvo de denúncias foi Cipriano Barata (1762-1838), recém-chegado de Lisboa, onde se formara em Medicina, por volta de 1793.
A denúncia mais grave ocorreu em julho de 1797: dizia respeito à existência de “ajuntamentos”, ou seja, encontros para a preparação de uma revolta. Quando recebeu a informação, o próprio governador da Bahia, D. Fernando José de Portugal e Castro (1788-1801), ordenou uma surra de pau no soldado Manoel de Santana por seus discursos contra a Igreja Católica, e exigiu a subordinação ao rei de Portugal e às leis.
As lojas maçônicas, por seu caráter secreto, tornaram-se um espaço importante de articulação de ideias. A Sociedade Maçônica Cavaleiros da Luz, na Bahia, tinha como integrantes, entre outros, os já citados Francisco Agostinho Gomes, Cipriano Barata e José Borges de Barros, que, juntos, participavam dessas reuniões sigilosas. Pertencente à elite baiana e maçom, Barros traduziu textos de Thomas Paine (1737-1809), político e intelectual inglês que participou da Revolução Americana (1776) e da Revolução Francesa. Por isso, foi denunciado às autoridades, mas suspeitou que seria preso e fugiu para Portugal.
Um dos marcos iniciais da Conjuração Baiana aconteceu na madrugada de 12 de agosto de 1798, quando foram divulgados onze boletins manuscritos com as principais resoluções dos revoltosos. Vários deles reclamavam do pagamento dos militares e da injustiça da hierarquia militar: “Cada hum soldado receba de soldo dois tostões cada dia”/ “Os oficiais augmento de soldo e posto”. A corrupção das autoridades também era denunciada. Além disso, os boletins afirmavam que a capitania da Bahia “sofria latrocínios, furtos com os títulos de impostura, tributos e direitos que são elaborados por ordem da rainha”.
A ordem colonial parecia estar em perigo, e o governo não hesitou em tomar medidas enérgicas. Desembargadores do Tribunal da Relação da Bahia imediatamente seguiram ordens para conduzir devassas (inquéritos). Eles concluíram que os boletins configuravam uma sedição que desafiava o regime monárquico absolutista de Portugal.
Os desembargadores também encontraram dois bilhetes escritos ao prior dos Carmelitas Descalços (o superior da ordem no convento carmelita) que se referiam aos “princípios de igualdade, liberdade e fraternidade que deverão ser por todos respeitados”. Neles, nomeavam o religioso “Chefe do Supremo Tribunal da Democracia Baiana” e chefe da “Nova Igreja Baiana”.
O escrevente Domingos da Silva Lisboa, o primeiro acusado como o autor dos boletins, chegou a ser preso. Contudo, depois de uma análise da caligrafia nos dois bilhetes, foi libertado. As suspeitas se voltaram, então, para o soldado Luiz Gonzaga das Virgens, que foi detido no dia 24 de agosto.
Sua prisão foi o estopim para o segundo episódio que marca a Conjuração Baiana. Um grupo de quatorze pessoas, depois de uma reunião na oficina do ourives Luiz Pires, decidiu realizar um encontro no campo do Dique do Desterro na noite de 25 de agosto. Lá, discutiram as possibilidades de um levante armado para a vitória da revolução. O ourives Luiz Pires era o único que portava uma arma de fogo.
Mas a dura repressão do governo da Bahia em pouco tempo tornou impossível o sonho dos conjurados. Quem se arriscou foi impiedosamente punido. Na manhã de 26 de agosto de 1798, começaram as prisões. Quarenta e uma pessoas foram detidas, mas somente 33, entre as quais onze escravos, chegaram ao final da devassa.
Ficou a cargo do advogado José Barbosa de Oliveira tentar inocentar os sediciosos, mas a defesa foi rejeitada. O Tribunal da Relação condenou à morte Lucas Dantas de Amorim Torres, Luiz Gonzaga das Virgens, o aprendiz de alfaiate Manuel Faustino dos Santos Lira e o mestre-alfaiate e dono de alfaiataria João de Deus do Nascimento. No dia 8 de novembro de 1799, eles foram enforcados e esquartejados. Este mês, aquela execução completa 210 anos. Uma data a ser lembrada pela memória nacional.
Patrícia Valim é autora da dissertação "Da sedição dos mulatos à conjuração baiana de 1798: a construção de uma memória histórica". (USP, 2007).
Saiba Mais - Bibliografia
BARROS, Francisco Borges de. Os confederados do partido da liberdade. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1922.
JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o Império: história do ensaio de sedição de 1798. São Paulo/Salvador: Hucitec/EdUFBA, 1996.
MATOSO, Kátia. Presença francesa no movimento democrático baiano de 1798. Bahia: Editora Itapuã, 1969.
SOUZA, Afonso Ruy. A primeira revolução social brasileira. 2ª ed. Salvador: Tipografia Beneditina, 1951.
Liberdade para a Bahia
Luis Henrique Dias Tavares