O mundo vivia a Segunda Grande Guerra quando o cineasta americano Orson Welles (1915-1985), consagrado pelo premiado filme Cidadão Kane, de 1941, cantava “O que é que a baiana tem?”, de Dorival Caymmi, em uma rádio dos Estados Unidos. Soltando a voz com forte sotaque, ele aprendia a identificar instrumentos musicais como o tamborim, o pandeiro e a cuíca. No estúdio, sua professora era Carmen Miranda (1909-1955), já conhecida do grande público daquele país. O programa “Hello Americans”, em que Welles apresentava a América Latina para os americanos do Norte, unia, assim, duas estrelas que deveriam encarnar o ideal pan-americanista expresso na Política da Boa Vizinhança, doutrina aplicada pelo presidente americano Franklin Roosevelt de 1933 a 1945.
A gravação de Carmen no programa radiofônico – que pode ser encontrada gratuitamente na Internet – foi usada num filme de 1993 chamado “It’s all true”, ou “É tudo verdade”, que conta a história do filme de mesmo nome iniciado por Welles no Brasil em 1942 e nunca terminado. O que se ouve na gravação de rádio é uma brasileira (embora nascida em Portugal) orgulhosa de sua terra e um americano encantado com o Brasil: tudo o que os governos dos dois países queriam para promover a Política da Boa Vizinhança.
Num momento do programa sobre o Brasil, Welles demonstrou interesse em derrubar os estereótipos sobre o país: “Dizem aqui no Rio que o samba é a alma do Brasil. É uma coisa popular e, como todas as coisas populares, pode ser mal-interpretada. Pode nos levar a crer, por exemplo, que os brasileiros não pensam seriamente em nada além de dançar e cantar. Isso não é verdade, como qualquer brasileiro lhe dirá”. A resposta de Carmen, no entanto, concordava com o discurso oficial: “É verdade, Orson. O Brasil é um país grande, muito grande. Eu gosto muito dele e todo brasileiro gosta muito dele”.
Até a chegada de Roosevelt ao poder, a relação entre os Estados Unidos e a América Latina era baseada no Big Stick (Grande Porrete), que pregava a intervenção política e militar para manter o domínio americano sobre os vizinhos do Sul. Mas com a Política da Boa Vizinhança, o domínio deixava de se basear na “força bruta” para se tornar predominantemente econômico e cultural.
Vivia-se um momento de guerra, o que contribuía para fortalecer os sentimentos nacionalistas em todo o mundo. Aqui nos trópicos, falava-se na união de todos os países americanos – tentando ignorar diferenças históricas, quase sempre irreconciliáveis – em prol do “esforço de guerra”. Emergia um novo pan-americanismo, diferente daquele ideal solidário defendido por Simón Bolívar no século XIX.
À época do encontro de Carmen com Welles, a carreira internacional da pequena notável – iniciada três anos antes – ia de vento em popa. A cantora, famosa pelos sambas e marchinhas que interpretava nas rádios brasileiras, e os músicos do Bando da Lua, que a acompanhavam, faziam sucesso nos Estados Unidos desde 1939 e divulgavam a música popular brasileira por meio de seus shows na Broadway e, posteriormente, pelas películas dos estúdios de cinema de Hollywood.
Carmen Miranda se transformava em símbolo não só do Brasil, mas de toda a América Latina, principalmente por causa da atuação em filmes. A popularidade da cantora-atriz firmava-se, levando consigo uma imagem de sensualidade e alegria contagiantes. Viraram ícones de brasilidade sua brejeirice – depois substituída pela excentricidade de estrela de Hollywood – e sua caracterização como baiana estilizada.
A identidade brasileira de Carmen estaria nos atributos tropicais de uma natureza exuberante, exemplificada no uso de bananas e abacaxis no seu turbante para as cenas dos filmes da Fox. Com o mesmo espírito, a imprensa brasileira noticiou que Orson Welles daria ênfase à “natureza esplêndida” do Brasil quando ele chegou para dar início às filmagens que resultariam em “um grande filme pan-americano”, a convite do governo de Getulio Vargas, em pleno Estado Novo.
Mas Welles não se adequou aos propósitos dos governos brasileiro e estadunidense nem aos interesses da milionária família Rockefeller, sócia majoritária da RKO Pictures, empresa que o contratara. Detentor de um olhar de cineasta maldito – “um pária em Hollywood”, como ele próprio se definia –, Welles resolveu filmar nordestinos que faziam reivindicações trabalhistas e as manifestações culturais de moradores das favelas cariocas, berço do samba, que eram, em sua maioria, negros e mestiços pobres.
Aos olhos do regime estadonovista e de seu órgão de censura, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), já estavam se tornando inconvenientes as filmagens feitas por Welles e sua equipe nos morros cariocas e na Praça Onze. Esperava-se que o cineasta se dedicasse às belezas das paisagens naturais da Cidade Maravilhosa e ao registro de cenas mais aprazíveis para os estrangeiros. A imagem de Brasil que interessava ao regime deveria seguir outra orientação, como a dos curtas-metragens do DIP que divulgavam as realizações governamentais nas escolas brasileiras, sendo também distribuídos para algumas escolas dos Estados Unidos.
O final infeliz para a história do filme inacabado de Orson Welles começou a se desenhar na reconstituição da viagem que quatro jangadeiros cearenses fizeram em 1941. Em suas precárias embarcações, eles percorreram os quase três mil quilômetros de Fortaleza ao Rio de Janeiro, permanecendo 61 dias no mar. O cineasta se interessou pelo assunto ainda nos Estados Unidos, ao ler as reportagens a respeito do feito dos jangadeiros, que queriam chamar a atenção das autoridades para suas reivindicações trabalhistas e a extrema exploração das indústrias pesqueiras que contratavam seus serviços.
Manoel Olímpio Meira, o Jacaré, era o líder do grupo e chegou a ser recebido pelo presidente Getulio Vargas para conversarem sobre a situação em que se encontravam os pescadores da região. O assunto virou notícia nacional e internacional, naquele momento de instauração de regimes populistas por toda a América Latina. Mas um acidente matou o líder dos jangadeiros: ele foi atingido por uma forte onda na Baía de Guanabara durante a filmagem que reconstituiria sua epopeia e entraria no filme de Welles.
Aos poucos, o noticiário carioca passou a ignorar Welles até ele ser ofuscado de vez pela chegada, no mesmo ano, de Nelson Rockefeller, que contou com uma detalhada cobertura na imprensa sobre suas reuniões, jantares e homenagens recebidas. Enquanto Rockefeller era prestigiado por autoridades e celebridades na capital federal, foram confiscadas as latas com as películas daquele que seria um grande filme pan-americano. Logo depois, Welles foi demitido da RKO e mandado de volta aos Estados Unidos.
O cineasta fez diversas tentativas de reaver as películas, mas a empresa americana informou que elas só poderiam ser devolvidas se o governo brasileiro autorizasse, o que nunca foi feito. Algumas das imagens gravadas pelo cineasta só seriam conhecidas pelo público no lançamento do filme que conta a elaboração de “It’s all true”, em 1993, oito anos após sua morte. No final dessa história, constata-se que a recente afirmação de um historiador brasileiro faz sentido: “O cinema interfere na História, e com ela se entrelaça inevitavelmente”.Flávia de Sá Pedreira é professora de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e autora de Chiclete eu misturo com banana: carnaval e cotidiano de guerra em Natal – 1920-1945 (EdUFRN, 2005).
Saiba Mais - Bibliografia
BARROS, José D’Assunção; NÓVOA, Jorge (orgs.). Cinema-História: teoria e representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
GARCIA, Tânia da Costa, O ‘it verde e amarelo’ de Carmen Miranda (1930-1946). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2004.
HOLANDA, Firmino. Orson Welles no Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001.
MENDONÇA, Ana Rita. Carmen Miranda foi a Washington. Rio de Janeiro: Record, 1999.
MORAES, Vinicius de. O cinema de meus olhos. (org.: Carlos Augusto Calil). São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Saiba mais - Filmes
“It´s All True: based on an unfinished film by Orson Welles”, de R. Wilson, M. Meisel e B. Krohn. USA: Paramount Pictures, 1993.
“Carmen Miranda: bananas is my business”, de Helena Solberg e David Meyer. Rio de Janeiro: Radiante Filmes, 1994.
Saiba mais - Internet
http://www.archive.org/details/otr_helloamericanswithorsonwelles (download gratuito do programa de rádio “Hello Americans” sobre o Brasil)
O filme perdido
Flávia de Sá Pedreira