Quando perder é vencer

Ilka Stern Cohen

  • Anúncios que mostram que o clima de guerra invade o dia a dia: a revolução paulista forneceu ideias e slogans para a publicidade.“Revolução! Precavenha-se fazendo suas compras da margarina Elza...” Esta propaganda, estampada no Diário Nacional em 1930, mostra como a perturbação da ordem invadia o cotidiano do país naquela época. De fato, entre 1920 e 1930, a ideia de revolução permeava o debate político e pairava sobre a sociedade brasileira. Militares demonstraram sua contrariedade em 1922 e em 1924, ao marcharem contra o governo federal, e um grupo de rebeldes militares percorreu o país em nome da revolução entre 1925 e 1927. Nas grandes cidades, o descontentamento de parte da população se manifestava em greves e inquietação.  

    Publicado no segundo semestre daquele ano, o anúncio de margarina permite compreender o clima do momento: uma sucessão presidencial complicada, a duvidosa vitória da situação e os insistentes boatos de revolução, que se concretizaram finalmente no golpe político-militar que destituiu o presidente Washington Luís e suspendeu a ordem constitucional. O grupo que se instalou no poder – liderado por Getulio Vargas – fechou as câmaras legislativas estaduais, dissolveu os partidos e substituiu os presidentes dos estados por interventores federais. 

    Os maiores derrotados pelo golpe foram os políticos que se alternavam no poder de modo a se perpetuarem no governo do país. Desde o início do regime republicano, esses grupos mantinham o controle do processo eleitoral, com destaque para os Partidos Republicanos de Minas Gerais e de São Paulo, imediatamente desalojados.  

    As relações entre São Paulo e o governo federal provisório eram tensas, marcadas por desavenças e pela insatisfação dos paulistas: a nomeação de interventores estranhos aos quadros políticos do estado incomodou tanto os membros do Partido Republicano Paulista (PRP), chamados perrepistas, como seus opositores, filiados ao Partido Democrático. Para piorar, os defensores da nova ordem fundaram a Legião Revolucionária, o “braço armado da revolução” em São Paulo.

    Naquele momento, termos como “carcomidos”, “politiqueiros” e “politicalha” enchiam as páginas dos jornais, construindo uma imagem da política como o reino de interesses mesquinhos. Em seu manifesto inaugural, a Legião se propunha a combater esses males, reformando os costumes e as formas tradicionais de exercício político por meio dos partidos. Para tanto, inovou os métodos de manifestação, conclamando a população a sair às ruas em defesa dos princípios revolucionários. A Legião promovia marchas e comícios cívicos, percorrendo os bairros da capital e organizando caravanas ao interior do estado em busca de afiliados. O uso de uma faixa vermelha no braço esquerdo sinalizava o apoio ao movimento.

    Toda essa agitação popular aumentava os temores das elites já bastante abalados pelas perdas sofridas na crise de 1929, entre eles o medo do comunismo e o medo da força das massas insatisfeitas. A inquietação crescia, e interesses frustrados, temores, convicções e paixões formavam o caldo de cultura desse clima pré-revolucionário.

    A atividade da Legião, embora breve, provocou uma mudança radical no panorama político, resultando na união do PRP e do PD. Os partidos se uniram em nome de um retorno à ordem institucional.  A trégua entre os políticos materializou-se na formação de uma Frente Única, cujos objetivos eram a reconquista da autonomia e a reconstitucionalização. Lideranças paulistas se deslocaram para o Rio de Janeiro inúmeras vezes, reivindicando a possibilidade de escolher seus próprios governantes e a convocação imediata de uma Assembleia Constituinte.

    Desde os primeiros dias da revolução, voluntários procuravam os postos de alistamento para se juntar aos soldados que partem rumo às frentes de luta.A indefinição de Vargas provocava um clima de conflito constantemente alimentado por manifestações públicas, passeatas e comícios, nos quais se clamava pela convocação de eleições. Também na imprensa fomentava-se um clima de animosidade crescente contra a “ditadura” instaurada. Os discursos manipulavam os sentimentos de humilhação e orgulho, e neste o grande estado de São Paulo – a “locomotiva que puxa os vagões”, “o berço da nação”, o símbolo da modernidade – encontrava-se esmagado por um governo considerado despótico e ilegítimo.

    Em 1931 e 1932, a tensão e a instabilidade marcaram as relações entre o governo federal e os políticos locais. Os paulistas, além de terem que engolir os interventores, ainda suportaram a perda de controle sobre as decisões referentes à política econômica, o que afetava imensamente os interesses dos cafeicultores.

     Uma conspiração para derrubar o governo começou a tomar corpo já em abril de 1931, com o envolvimento de políticos de São Paulo e de outros estados, apoiados por setores do Exército. Enquanto membros desses dois grupos viajavam pelo país para obter apoio, os estudantes organizavam a adesão popular, com os comícios da Frente Única, clamando por legalidade, Constituição e autonomia. A Associação Comercial de São Paulo e a Federação das Indústrias, sindicatos e entidades, como a Liga Paulista Pró-Constituinte, também apoiavam a mobilização.

    Qualquer pretexto servia para juntar a multidão. Em janeiro de 1932, por exemplo, o aniversário de São Paulo foi comemorado com enorme comício na Praça da Sé. A multidão empunhava bandeiras do estado, além de cartazes com palavras de ordem como “Tudo pelo Brasil! Tudo por São Paulo!”, “Abaixo a ditadura!”, ou ainda “Constituição é Ordem e Justiça!”.

    Os ânimos se acirraram particularmente quando Getulio Vargas concordou em nomear um interventor “civil e paulista”, conforme exigência da Frente Única. Indicado pelos paulistas, após longas negociações o governo federal nomeou o embaixador Pedro de Toledo. Na data marcada para o anúncio de seu secretariado (23 de maio), houve um enorme comício na Praça do Patriarca, na cidade de São Paulo.

     Incitada pelos discursos inflamados de líderes estudantis e políticos – e inquieta devido às informações desencontradas sobre as negociações entre o emissário de Getulio Vargas e os políticos paulistas –, parte da multidão que estava na Praça do Patriarca saiu em direção ao Palácio dos Campos Elíseos, onde se faria o anúncio. Em meio à confusão, um grupo decidiu atacar a sede da Legião, que abrigava os jornais getulistas: Correio da Tarde e A Razão. Enquanto isso, outros invadiam as lojas de armas, começando um enorme tumulto que resultou em tiroteio com 13 mortos e muitos feridos. O relato oficial registra a identidade de quatro deles: Miragaia, Martins, Drausio e Camargo, como símbolo da luta. As iniciais de seus nomes – MMDC – batizaram a primeira milícia civil encarregada dos preparativos para a guerra contra os desmandos do governo federal.

    A partir desse episódio, o clima de revolta se acirrou. As tentativas de diálogo cederam à pressão pela luta armada. Os discursos inflamados, a exaltação cívica, as convicções e paixões individuais e coletivas explicam, em parte, a dimensão da mobilização popular e a enorme disposição dos voluntários. Convencidas por seus representantes políticos, as elites assumiram a liderança da luta. A população paulista foi levada de roldão, envolvendo-se no recrutamento de voluntários, treinamentos militares, coleta de fundos para a compra de armas e munição, confecção de uniformes e equipamentos, entre outros preparativos.

    Do ponto de vista militar, o comandante da II Região (São Paulo), Euclides de Figueiredo, contava com reforços provenientes de Mato Grosso e do Rio Grande do Sul, que jamais chegaram. Rapidamente o governo federal conseguiu sufocar o movimento circunscrevendo-o ao território paulista.

    A guerra começou na noite de 9 de julho, com ciclistas e motociclistas distribuindo as ordens de mobilização nos diferentes pontos de reunião espalhados pela cidade. No dia seguinte, um domingo, o Largo de São Francisco estava coalhado de jovens voluntários, que procuravam os postos de alistamento para se juntar aos soldados que partiam rumo às frentes de luta. Três meses e mais de 600 mortos depois, os paulistas se renderam e os políticos envolvidos no movimento foram presos e exilados. Sufocado o movimento, Getulio Vargas marcou as eleições para a Constituinte para maio de 1933, num gesto de aproximação com os políticos de São Paulo. A convocação foi imediatamente assumida como uma vitória moral: “Perdemos, mas vencemos” tornou-se a versão oficial do episódio.

     

    Ilka Stern Cohené autora de Bombas sobre São Paulo: a Revolução de 1924 (Unesp, 2007).

     

    Saiba Mais - Bibliografia


    BORGES, Vavy Pacheco. Tenentismo e revolução. São Paulo: Brasiliense, 1992.


    BORGES, Vavy Pacheco. Memória paulista. São Paulo: Edusp, 1997.

    CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932: A causa paulista. São Paulo: Brasiliense, 1981.