“Não queremos ser e não seremos mais escravizados pelos mesmos senhores da politicalha que arruinou a moral republicana em quarenta anos de escândalos e crimes”. Assim o interventor paraense, Magalhães Barata (1888-1959), expôs sua visão sobre omovimento armado ocorrido no estado de São Paulo entre os meses de julho e outubro de 1932 para derrubar o Governo Provisório de Getulio Vargas e promulgar uma nova Constituição. O que estava em marcha era entendido como parte de uma luta maior, que envolvia a consolidação da moralidade pública e política à qual acreditavam ter dado início com a retirada de Washington Luís do Palácio do Catete em 1930. A vitória paulista no conflito significaria o retorno do “perrepismo” – referência ao Partido Republicano Paulista (PRP) – e dos “sombrios tempos” da Primeira República, que desalojara o Norte do palco da República brasileira.
O 9 de julho de 1932 não levou só à população paulista e às suas lideranças civis e militares as tensões, os medos e as incertezas típicas de tempos de guerra. Todo o Brasil passou a viver, a partir desse dia, ainda que de modo distinto do que ocorria em São Paulo, o clima de uma guerra civil. Além do forte papel da imprensa – que noticiou e mobilizou todos os estados da federação em torno dos combates que ocorriam principalmente dentro das fronteiras paulistas –, também os chefes militares nacionais e os governadores estaduais ou interventores estiveram à frente da defesa de Getulio e de seu Governo Provisório.
No caso do “Norte” – que corresponde às atuais regiões Norte e Nordeste, acrescido do estado do Espírito Santo –, o envolvimento com a guerra foi intenso e marcado por diversas estratégias de combate, algumas plenamente executadas, outras, nem tanto. Os interventores nortistas eram, então, nomeados por Vargas, sob forte influência do tenente Juarez Távora (1898-1975), principal líder civil e militar da região durante a tomada de poder por parte dos revolucionários de 1930 e durante os primeiros anos do Governo Provisório. Essas novas lideranças, tão logo souberam que a grave crise política entre São Paulo e o Governo Provisório tomara o caminho das armas, passaram a se mobilizar, mostrando ao presidente que ele não estava só, e que esperavam recolocar o “Norte” no mapa político do país. Afinal, a Primeira República significara um período de distanciamento da região do centro político do poder.
Para tanto, uma das principais armas de combate desses interventores foi o telégrafo, que permitia uma comunicação e uma articulação rápidas e eficientes. Diariamente enviavam ao Palácio do Catete notícias sobre como os estados do Norte se posicionavam frente à guerra civil: combatiam possíveis ameaças internas, desencadeadas por simpatizantes do movimento paulista, e ofereciam apoio, político e militar, ao Governo Provisório.
Os interventores do Norte deixam claro em seus telegramas que, se para os paulistas a “Revolução Constitucionalista” era justa e necessária, para o Norte a “Guerra Paulista” tinha outros significados. O conflito, nas palavras desses novos líderes estaduais, era uma “obra impatriótica”, uma “onda de anarquia que tenta aniquilar o país”, uma “masorca levantada pela ambição de politiqueiros”, articulada e liderada por “rebeldes de São Paulo, armados pelas mãos criminosas de políticos eivados de ambição”, que deveriam ser “execrados [na] opinião nacional”. Os rebeldes eram definidos como “aqueles que, criminosamente, sem ideais, (...) por mera ambição política, procuram lançar a desordem e a anarquia no país”. Eram pessoas com “criminosos intuitos reacionários de todos os matizes (...) que não hesitaram sequer ante o grande crime do desmembramento da pátria comum”. Eram, portanto, “inimigos da pátria”. Ao definirem os rebeldes nesses termos, os interventores nortistas se apresentam como o seu oposto: os aliados do Governo Provisório e verdadeiros defensores da pátria, que atuavam sem caráter político nocivo ou em benefício próprio, distantes dos “políticos profissionais” ou “politiqueiros”.
Mais do que palavras de apoio ao Governo Provisório, os interventores do Norte buscaram atuar de modo decisivo no conflito, pedindo, alguns deles, a ida para o front logo nos primeiros dias de guerra, o que significava abandonar seus prestigiosos postos. São bons exemplos os pedidos de Carneiro de Mendonça (1894-1946), interventor do Ceará, ou Seroa da Mota (1901-?), interventor do Maranhão, ou, ainda, Augusto Maynard (1886-1957), interventor sergipano, que chegou a participar a Vargas que, “caso eminente amigo considere de utilidade meus serviços próprio teatro luta, não sinta nenhum constrangimento chamar-me fileiras a que acorrerei maior prazer”.
Seria simplista entender a tentativa de participação dos interventores com armas nas mãos apenas considerando o fato de ocuparem as Interventorias por nomeação de Vargas. Na verdade, é preciso levar em conta que, no caso dos interventores citados, todos eram militares, com vivência nas lutas tenentistas da década de 1920. Para eles, segundo palavras de Magalhães Barata, “o Norte principalmente que foi beneficiado mais direta e fundamente pelo influxo da revolução precisa [se] antepor à arremetida criminosa do perrepismo em armas”. Nada mais lógico do que se permitir “a todos os interventores do Norte marcharem à frente das forças regulares de que dispomos, com destino fronteiras paulistas”.
Todos os pedidos dos interventores para irem ao front foram negados por Vargas, sob a alegação de que os serviços prestados nos estados, naquele momento, não poderiam ser dispensados. O Governo Provisório entendia que o combate e a derrota dos revoltosos também se dariam em outros campos de batalha, evitando, por exemplo, o surgimento de focos de rebelados fora de São Paulo. Além disso, caberia a esses interventores mobilizar os soldados dispostos a lutar contra os paulistas. E foi o que se fez.
O envio de tropas do Norte aconteceu com uma frequência impressionante. As primeiras tropas que partiram para o Rio de Janeiro – onde eram incorporadas às forças organizadas pelo Quartel-General, para só depois serem enviadas aos campos de batalha – saíram da Bahia e de Pernambuco ainda no dia 12 de julho de 1932. A última, formada por soldados cearenses, partiu em 30 de setembro. Essas tropas eram de três tipos: os corpos regulares, vindos das unidades militares estaduais, notadamente dos Batalhões de Caçadores; os batalhões da Força Pública e Policial dos estados e os contingentes de voluntários, para os quais houve uma intensa campanha de mobilização para o alistamento. Neste último tipo de tropa, também havia reservistas, que, mesmo não convocados oficialmente, ingressaram como voluntários.
Os números desses embarques evidenciam o envolvimento do Norte na Guerra Paulista: ao todo, durante os 86 dias de conflito, partiram 58 tropas, o que correspondeu a um embarque de forças militares a cada um dia e meio! Tendo como base apenas os telegramas dos interventores que apresentam o número de soldados e oficiais enviados – já que nem todos têm essa informação –, encontram-se tropas compostas de apenas 100 soldados – sendo uma amazonense e outra sergipana – até 1.258 soldados pernambucanos, enviados no dia 6 de agosto. Numa avaliação preliminar, o Norte mandou para a guerra civil pelo menos 19.554 soldados, o que não é pouco. Se as tropas governistas envolvidas no conflito contaram com 55.000 soldados, conforme alguns autores, quase metade desse contingente foi de soldados nortistas mobilizados pelos interventores.
Ainda há muito para se entender sobre a Guerra Paulista e seus múltiplos significados para os que se empenharam na defesa do Governo Provisório. Enquanto para os defensores da imediata constitucionalização o conflito se torna uma “Revolução” e é comumente exaltado como um feito heroico a ser lembrado, a complexidade dos que apoiaram Vargas parece ter ficado esquecida. A mais intensa guerra civil brasileira do século XX foi bem maior do que se pensa.
Raimundo Helio Lopesé autor da dissertação “Os Batalhões Provisórios: legitimação, mobilização e alistamento para uma guerra nacional – Ceará, 1932” (UFC, 2009).
Saiba Mais - Bibliografia
CAPELATO, Maria Helena. O Movimento de 1932 e a causa paulista. São Paulo: Brasiliense, 1981.
GOMES, Angela de Castro (org.).Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980.
HILTON, Stanley. A Guerra civil brasileira: história da Revolução Constitucionalista de 1932. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
Contra os inimigos da pátria
Raimundo Helio Lopes