Por trás da Primeira República

Paulo Rezzutti

  • No mais ermo dos pátios da Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, Centro de São Paulo, um obelisco se sobressai. Nele, é possível ver alegorias funerárias e uma placa em latim afirmando que ali está sepultado o professor Júlio Frank, morto em 1841. Nascido em 1808 – não em 1809, como consta no túmulo –, ele teria sido o criador da Burschenschaft Paulista, também conhecida como Bucha, ou simplesmente B. P. Nascida como uma organização estudantil, a sociedade teve membros que ocuparam postos-chave no governo, inclusive a Presidência da República. Atuava fortemente na política brasileira até a queda, em 1930, de Washington Luís (1869-1957), o último presidente bucheiro do Brasil – ao menos que se saiba.

    Júlio Frank era um estudante universitário alemão que veio fugido para o Brasil. Chegara ao Rio de Janeiro em 1831, logo após a abdicação de D. Pedro I, e em 14 de julho partiu para São Paulo. Inicialmente foi trabalhar na Fábrica de Ferro Ipanema, atual Iperó, depois seguiu para Sorocaba, e por fim estabeleceu-se em São Paulo, onde deu aulas em repúblicas estudantis até ser contratado, em 1834, como professor de História e Geografia no Curso Anexo da Academia de Direito de São Paulo, uma espécie de preparatório para a faculdade.

    O contato com os alunos influenciou a formação da Burschenschaft (Sociedade de Camaradas), que já era conhecida em 1834. Embasada em ideais liberais e antiabsolutistas, a Bucha auxiliava estudantes sem recursos, mas com potencial e vontade de estudar, sem que se soubesse quem eram seus protetores. Com o passar do tempo, a organização se ampliou: à medida que iam se formando, os ex-alunos buscavam colocações para os que estavam terminando o curso. O ideal inicial também foi sendo modificado: no início a organização era liberal, abolicionista e republicana. Mas, conforme os ardores juvenis iam arrefecendo, passou a contar com membros conservadores, escravocratas e monarquistas.

    Os discípulos de Frank criaram uma estrutura dividida em graus e organizaram a Bucha dentro e fora da São Francisco: na faculdade, ela era formada por Catecúmenos, Crentes e Doze Apóstolos; fora, por Chefes Supremos e o Conselho dos Divinos. Seus membros eram escolhidos entre os estudantes que se destacassem por sua firmeza de caráter, espírito filantrópico, amor à liberdade e aos estudos. Acredita-se que, durante a República Velha (1889-1930), não havia ministro, juiz ou candidato à Presidência da República que fosse indicado sem deliberação do Conselho dos Divinos.

    O líder estudantil da Bucha, um estudante do quinto ano, era o chaveiro. No final do ano letivo, como contagem regressiva para o fim das aulas, uma velha chave era pendurada a cada dia em um pilar das Arcadas. No último, acontecia uma grande festa de encerramento, quando a chave era passada para um estudante que tinha terminado o quarto ano. Durante a República Velha, a Festa da Chave, como era conhecido o evento, contava com a presença dos presidentes do país e da província, do prefeito, de ministros e juízes do Supremo. O jornal O Estado de S. Paulo dava ampla cobertura. Aliás, o diretor do periódico, Júlio Mesquita Filho (1892-1962), conhecia bem essa celebração: já havia sido um chaveiro.

    Conta-se que, durante a Primeira Guerra (1914-1918), um delegado, vendo a estranha movimentação no Jardim da Luz – as reuniões eram realizadas no subsolo do prédio onde hoje está a Pinacoteca do Estado – e pensando tratar-se de espiões alemães, invadiu o encontro, dando voz de prisão a um grupo fantasiado, que usava capas de cavaleiro com insígnias coloridas em forma de coração, espada etc. A ordem foi rapidamente revogada pelo próprio presidente da província, Altino Arantes, um dos presentes a essa reunião, juntamente com o prefeito, Washington Luís. O delegado foi iniciado na organização para preservar seu segredo.

    Os bucheiros atuaram na criação da Liga Nacionalista, inspirada nos ideais do poeta Olavo Bilac (1865-1918). O grupo, entre outras coisas, pregava a melhoria e a ampliação da instrução pública no Brasil e colaborou ativamente, até mais que o próprio governo, durante a catastrófica passagem de Washington Luís pela prefeitura paulistana, período conhecido como os cinco Gs: gripe, guerra, greve, geada e gafanhoto. Ajudou, por exemplo, a montar hospitais e a cuidar das viúvas e órfãos durante a epidemia da gripe espanhola. Sendo um braço da Bucha, a Liga aglutinou membros da Faculdade de Medicina e da Politécnica. Esses cursos, por sua vez, também possuíam suas próprias organizações, coirmãs da Bucha: a Jungendschaft (União da Mocidade), na Medicina, e a Landmanschaft (sociedade das pessoas de um mesmo campo), na Politécnica.

    A decadência da Bucha começou com a ordem do presidente Arthur Bernardes (1875-1955) de proibir o funcionamento da Liga Nacionalista, após a Revolução Tenentista de 1924 em São Paulo. As duas organizações, aliadas à Associação Comercial de São Paulo, chefiada então pelo ex-chaveiro José Carlos Macedo Soares (1883-1968), tiveram importante papel na proteção da população e na tentativa de abastecimento da capital durante o cerco das tropas legalistas, e foram punidas por isso. Outro fator que causou a decadência da Bucha foi a distorção dos seus valores iniciais. Com a criação do Centro Acadêmico XI de Agosto, a benemerência da Bucha transformou-se em moeda de troca: quem votasse na chapa de membros bucheiros para a diretoria do grêmio receberia boas indicações e facilidades para sua vida profissional; quem não apoiasse a chapa estaria fora dos conchavos políticos. Isso causou indignação em uma facção de alunos, que passou a combater a Bucha. O Partido Republicano Paulista (PRP), órgão político dominado pelos bucheiros, rachou em 1926 com a criação do Partido Democrático Paulista, formado em grande parte por ex-integrantes da Liga Nacionalista, que se colocariam ao lado da Aliança Liberal contra o PRP em 1930.

    A importância dos membros da Bucha na política, na diplomacia e no direito pode ser resumida em uma história. Quando a polícia política do Estado Novo invadiu a Faculdade de Direito, apreendeu documentos da Bucha e os enviou a Getulio Vargas (1882-1954). O presidente, ao tomar conhecimento das pessoas envolvidas, teria decidido deixar a questão de lado: não seria possível governar o Brasil sem elas.

     

    Paulo Rezzutti é autor de Titília e o Demonão, cartas inéditas de D. Pedro I à Marquesa de Santos (Geração Editorial, 2011) e pesquisador da história de São Paulo.

     

    Saiba Mais - Bibliografi

    BANDECCHI, Brasil. A Bucha, a Maçonaria e o Espírito Liberal. São Paulo: Parma, 1982.

    Franco, Afonso Arinos de Melo. Rodrigues Alves. Apogeu e Queda do Presidencialismo. Brasília: Senado Federal, 2001.

    SCHMIDT, Afonso. A sombra de Júlio Frank. São Paulo: Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da USP, 2008.