Conexão argentina

Alex Borucki (Tradução: Carolina Ferro)

  • Mulheres com um serviçal doméstico, todos vestidos à moda europeia. Argentina, 1827. O porto de Buenos Aires dependia do contrabando de escravos para sobreviver. (Imagem: Reprodução)Buenos Aires tinha cinco anos de fundação quando, em 1585, o cabildo (similar à câmara municipal) solicitou à Coroa espanhola permissão para trazer escravos de Angola. O bispo de Tucumán, Francisco de Vitória, enviou uma expedição comercial de Buenos Aires até o Brasil. Ela passou por São Vicente, Salvador e Rio de Janeiro. Quando retornou a Buenos Aires, em 1587, trazia, além de mercadorias, cerca de 60 escravos. Foram os primeiros africanos a chegar ao Rio da Prata em uma expedição escravista.

    Este episódio iniciou um processo de 250 anos, no qual os espanhóis do Rio da Prata, assim como os “riopratenses”, se relacionaram com o Atlântico português com o objetivo de comprar africanos escravizados. Como os espanhóis não possuíam feitorias escravistas na África nem contatos diretos com traficantes africanos, a Coroa estabeleceu contratos com traficantes europeus para suprir suas colônias com escravos até 1789, quando começou a desenvolver este tipo de comércio em embarcações espanholas diretamente da África.  

    Apesar de o Rio da Prata não ter uma sociedade baseada exclusivamente na mão de obra escrava, os cativos eram fundamentais para as fazendas pecuaristas e as lavouras de trigo. Também desempenhavam a maior parte dos ofícios urbanos, da carpintaria à sapataria. Os comerciantes constituíam a classe principal daquela sociedade, inclusive acima dos proprietários de terra, e vendiam escravos para o centro do império espanhol na América do Sul, Potosí e Lima, através de rotas comerciais que iam para o interior do que hoje são a Argentina, a Bolívia, o Paraguai, o Chile e o Peru.

    O tráfico de escravos foi central para Buenos Aires entre 1580 e 1640, durante a união das Coroas portuguesa e espanhola – a chamada União Ibérica. Os espanhóis haviam fundado a cidade para resguardar as fronteiras do Império ao sul e bloquear, às incursões estrangeiras, o acesso à Potosí, sua principal fonte de prata. Buenos Aires era a princípio um porto fechado ao comércio, para evitar o contrabando. Como não produzia nada que pudesse vender às províncias do norte, a subsistência desse porto dependia dos poucos navios que vinham da Espanha com licença para fornecer guarnição militar. Na maioria das vezes, porém, os comerciantes compravam estas licenças na Espanha com o objetivo de embarcar escravos no Brasil e vendê-los em Buenos Aires. Quando os barcos chegavam, eles pagavam um indulto aos cofres régios, e assim regularizavam o comércio dos escravos. Buenos Aires dependia destes indultos, ou seja, seu funcionamento dependia do contrabando legalizado.

    Esta era apenas uma entre as várias formas de desembarcar escravos na região. Estima-se que até 1645 chegaram ao Rio da Prata 50 mil africanos escravizados – um terço vindo de Angola e dois terços do Rio de Janeiro e de Salvador. Esses africanos fundaram a população negra em Córdoba, Tucumán, Salta e outras regiões internas, onde as economias eram orientadas a produzir vinho, produtos agrícolas, tecidos e a criar gado e mulas para Potosí. Assim obtinham prata potosina e com ela pagavam os mercadores em Buenos Aires, que a canalizavam para as rotas portuguesas.

    A ruptura entre Portugal e Espanha, em 1640, suspendeu o tráfico português para a região do Prata. Alguns navios holandeses chegaram a Buenos Aires para vender escravos, mas a conexão portuguesa se restabeleceu em 1680, com a fundação da Colônia do Sacramento – onde hoje é o Uruguai. O principal ramo comercial dessa colônia também era o tráfico de escravos, via Buenos Aires, a maior parte originária do Rio de Janeiro e, em menor escala, de Salvador.

    Mudanças políticas na Europa estabeleceram novos contratos de introdução de escravos para as colônias espanholas. Em Buenos Aires, os franceses da Companhia da Guiné (1703-1713) introduziram 3 mil escravos, e os ingleses da Companhia do Mar do Sul (1714-1737) trouxeram outros 14 mil africanos. Durante a segunda metade do século XVIII, a Coroa espanhola investiu no tráfico de escravos com o objetivo de transformar Cuba, Venezuela e o Rio da Prata em centros de produção e comércio para o Império. Entre 1777 e 1812, o Rio da Prata recebeu pelo menos 70 mil escravos, sendo 60% vindos do Brasil e o restante diretamente da África (Moçambique foi a principal origem, seguida por Angola e Congo). Parte desses escravos era reembarcada para o Chile, para o Alto Peru e para Lima.

    O Governo das Províncias Unidas do Rio da Prata proibiu o tráfico em 1812, durante a revolução de independência. Depois disso, alguns escravos chegaram de forma esporádica, vindos do Brasil. Entre 1825 e 1828, durante a guerra entre Argentina e Brasil que determinou a independência do Uruguai, corsários argentinos capturaram barcos brasileiros e conduziram em torno de 1.700 escravos a Carmen de Patagones, ao sul de Buenos Aires, para desembarcá-los como “libertos”. Mas alguns foram postos a serviço das milícias para combater o Império do Brasil.

    Entre 1832 e 1835, para ocultar a prática ilegal, o governo uruguaio fez três contratos visando introduzir “colonos africanos” em Montevidéu, em troca de uma quantia paga pelos traficantes brasileiros. Esta prática estava conectada com a continuidade do tráfico de escravos, já ilegal, a partir do Rio de Janeiro desde 1830. Em sua maioria, esses africanos foram introduzidos como escravos, e não como “colonos”. Foram os últimos escravizados vindos diretamente da África para a América continental espanhola.

    Alex Borucki é professor da Universidade da Califórnia, Irvine, nos Estados Unidos, e autor de Abolicionismo y tráfico de esclavos en Montevideo tras la fundación republicana, 1829-1853(Biblioteca Nacional, 2009).

    Saiba mais

    MOUTOUKIAS, Zacarias. Contrabando y Control Colonial en el siglo XVII: Buenos Aires, el Atlántico y el espacio peruano. Buenos Aires: CEAL, 1988.
    KÜHN, Fábio. “Os interesses do governador: Luiz Garcia de Bivar e os negociantes da Colônia do Sacramento (1749-1760)”. Topoi, vol. 13, nº 24, p. 29-42, jan.-jun. 2012.
    PRADO, Fabricio. “A carreira transimperial de don Manuel Cipriano de Melo no rio da Prata do século XVIII”. Topoi, vol. 13, nº 25, p. 168-184, jul./dez. 2012.