O fim, a contragosto

Gilberto da Silva Guizelin

  • Já haviam se passado cinco anos desde a implantação da Lei Eusébio de Queirós – a segunda a proibir o tráfico de escravos para o Brasil – quando, em 11 de outubro de 1855, nas proximidades da cidade litorânea de Serinhaém, sul de Pernambuco, contrabandistas tentaram introduzir no país 210 escravos. Eles vinham a bordo de um palhabote, pequena embarcação de dois mastros, veloz e com bom espaço para o transporte de mercadorias.

    Alertada de antemão pelas autoridades britânicas em Angola, a Marinha do Brasil já aguardava o desembarque desde o final de setembro, pelo que havia intensificado o patrulhamento do litoral pernambucano, região que já se sabia ser o destino final do palhabote saído da foz do rio Zaire. Surpreendidos pelo patrulhamento reforçado daquele litoral, os traficantes foram obrigados a abandonar a carga humana que traziam para se salvarem da prisão e do julgamento pelo crime de contrabando de “braços de trabalho” africanos.

    O frustrado desembarque de Serinhaém costuma ser descrito – e com razão – como o capítulo final dos 300 anos de história do “infame comércio” de gente entre uma costa e outra do Atlântico Sul. Mas essa versão oculta uma intrincada trama política e policial.

    Desde 1831, quando o Parlamento estabeleceu a primeira lei proibitiva do tráfico, esses comerciantes vinham se utilizando de portos secundários e clandestinos para descarregar as suas mercadorias humanas. As estratégias adotadas pelos negociantes de escravos não eram de todo desconhecidas pelas autoridades – as mesmas que, até então, eram as maiores aliadas dos traficantes por conexões financeiras, políticas e até familiares. Somente na década de 1850, com o endurecimento da vigilância do governo central sobre as autoridades locais, o desembarque clandestino de africanos passou a ser combatido com eficiência. Ainda assim, mesmo no caso de Serinhaém, houve conivência entre autoridades locais e traficantes.

    Embora coubesse aos presidentes provinciais a organização da repressão em terra, na data do desembarque não havia em Serinhaém nem um delegado apto para declarar voz de prisão aos contrabandistas, nem um magistrado nomeado para emitir a ordem de busca e apreensão da carga humana trazida no porão do navio negreiro. Diante de tamanha desorganização, não surpreende ter a apreensão do palhabote ocorrido apenas dois dias após a chegada em Serinhaém, dando tempo mais que suficiente à sua tripulação para fugir e levar consigo 48 das melhores “peças humanas” do carregamento.

    Acaso do destino, ou teriam os traficantes contado com informações privilegiadas? As autoridades do Império tomaram conhecimento de que a embarcação havia sido carregada em Angola por um pardo de nome João José de Farias, natural de Serinhaém. É bem provável que tenha instruído os traficantes sobre a geografia da região. Além disso, o capitão do navio negreiro trazia consigo uma carta endereçada a João Manoel de Barros Wanderley, um importante senhor de engenho daquelas imediações, aparentado dos Cavalcanti, tradicional família pernambucana ligada ao tráfico atlântico. Não é difícil supor que João Manoel fosse o contato dos traficantes em terra, e de que eles agiam contando com a cumplicidade dos Cavalcanti.

    Esse tipo de auxílio das autoridades e da elite local era comum nas décadas de 1830 e 1840. Mas aqueles eram outros tempos, no qual a conivência com o negócio negreiro não podia mais ser tolerada pelo governo central brasileiro. Não por acaso, todas as tentativas de desembarque ocorridas após 1850 foram acompanhadas de perto pelos ministros da Justiça e dos Negócios Estrangeiros do Império. O objetivo era restabelecer a soberania nacional arranhada pelo bill Aberdeen – medida adotada pela Inglaterra para retaliar a vista grossa que se fazia ao tráfico, por meio de abordagens e apreensões de embarcações brasileiras tanto em alto-mar como nos portos nacionais. Para o ministro dos Negócios Estrangeiros, José Maria da Silva Paranhos, visconde do Rio Branco, era preciso convencer os ingleses da “firme determinação do governo imperial em aniquilar todas as tentativas de fazer reviver o detestável tráfico de africanos”.

    Acontece que o caso de Serinhaém não repercutiu bem no governo inglês, que considerou a ação das autoridades “longe de ser satisfatória”. Para acalmar os britânicos, o governo imperial exonerou o presidente de Pernambuco, José Bento da Cunha Figueiredo – apontado por diplomatas ingleses como o principal responsável por deixar escapar a tripulação do palhabote – e afastou o delegado responsável pela apreensão das “peças humanas” contrabandeadas, considerado relutante em cumprir com o seu dever. Estas medidas simbólicas não tiveram o efeito esperado sobre Londres. Pelo contrário, o governo inglês, através de seu encarregado de negócios no Rio de Janeiro, Willian Stafford Jerningham, manifestou em nota de 7 de março de 1856 à Legação Imperial a sua desconfiança em relação ao verdadeiro interesse do Brasil em realizar “os maiores esforços a fim de descobrir e punir com todo o rigor das leis os delinquentes nesta e em qualquer outra tentativa de tráfico”. Como consequência, o bill Aberdeen foi mantido em vigor, e a Marinha Britânica intensificou o patrulhamento da costa brasileira, o que gerou novo desgaste nas relações anglo-brasileiras.

    Muito mais do que apenas o capítulo final do tráfico de escravos para o Brasil, o caso de Serinhaém revela a manutenção da “corrupção dos costumes” da sociedade brasileira de meados do século XIX, e a sua dificuldade em abdicar do tráfico de escravos africanos.

    Gilberto da Silva Guizeliné autor do livro Comércio de Almas & Política Externa: A Diretriz Atlântico-Africana da Diplomacia Imperial Brasileira, 1822-1856 (EdUEL, 2013).

    Saiba Mais

    BETHEL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil. A Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos, 1807-1869. São Paulo: Edusp, 1976.
    NABUCO, Joaquim. Um estadista do império. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
    RODRIGUES, Jaime. O infame comércio. Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Ed. Unicamp, 2000.
    VEIGA, Gláucio. O gabinete Olinda e a política pernambucana. O desembarque de Serinhaém. Recife: Editora Universitária, 1977.